sábado, 31 de julho de 2021

Quando tu aprendes num livro algo que a tua profesora de francês se recusou a ensinar

Para além de palavras como «boulangerie» e «fromagerie», sabia francês suficiente para perceber que o título da escultura de Rodin, «Le Baise», fazia parte da sua subversão. Pois «baiser», em francês, tanto pode significar a inocência de um beijo como a qualidade animalesca de uma foda. Pode-se dizer «le baiser» referindo um beijo mas, se se diz »Baise-moi», é uma súplica para se ser fodido. Inocência e súplica estão igualmente envolvidas no abraço destes dois amantes cujos lábios nunca se tocaram: imobilizados juntos, mas separados para toda a eternidade (...)


REYNARD, SYLVAIN, O Inferno de Gabriel, S. Pedro do Estoril, Saída de emergência, 2011, p 88.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

domingo, 25 de julho de 2021

Ligar ou não a coincidências

Não ligo muito a coincidências. Há nelas algo de fantasmagórico: por um momento sentimos o que deve ser viver num universo ordenado, governado por Deus, com Ele próprio a olhar-nos sobre o ombro e a mostrar solicitamente sinais grosseiros de um plano cósmico. Prefiro sentir que as coisas são caóticas, independentes, permanente e temporariamente loucas, sentir a certeza da ignorância humana, da sua brutalidade, da sua loucura.

BARNES, Julian, O papagaio de Flaubert, Lisboa, Quetzal, 2019, p. 83.


sábado, 24 de julho de 2021

O exacto curso do rio

Exactamente como foi, o medo de me enganar

mais tarde na memória - é tudo o que me resta: estar

de noite às escuras a pensar em ti


E se me lembro mal, se troco as vezes, naquela

quinta-feira o dia do amor em vez de ser

na quarta, o erro surge-me gigante,

um peso carregado como Atlas


Por isso é que preciso de lembrar coisas

exactas, como aconteceu tudo; não só

transpor depois na ficção recolhida, sou eu

que te preciso e dos teus dias

que me foram meus


Lembrar-me exactamente como foi, o que usei

nesse dia e o que usei no outro, até que horas

tudo, se havia gente ou não

e em que dia. Porque as palavras depois se 

reconstroem


O que se disse então torna-se fácil.

Assim dito parece coisa pouca,

lugar comum e 

fácil, mas as noites são grandes


e lembrar-te

exactamente,

de uma forma correcta


é-me tão importante

dentro das noites a pensar em ti

sabendo: não te vejo nunca mais.

 

Dedico-te este poema P, há um mês que te conheci, numa quinta-feira de lua cheia.

AMARAL, Ana Luísa, Imagias, Gótica, Viseu, 2002, pp. 7 e 8.

Ensina-se-lhes

Ensina-se-lhes que sejam valente, para um dia virem a ser julgados por covardes!

Ensina-se-lhes que sejam justos, para viverem num Mundo em que reina a injustiça!

Ensina-se-lhes que sejam leais, para que a lealdade, um dia, os leve à forca!


MONTEIRO, Luís de Stau, Felizmente há luar, Maia, Areal Editores, 2017, p 83.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Entre os que vão para o mar

Praia do Amado, Portimão 

Entre os que vão para o mar há os que descobrem novos mundos e acrescentam continentes à terra e estrelas ao céu: são os mestres, os grandes, os eternamente magníficos. Depois há os que cospem terror das portinholas dos navios, que pilham, que ficam ricos e engordam. Outros vão à procura de ouro e de seda sob céus estranhos. Outros ainda apanham salmão para os gourmet ou bacalhau para os pobres. Eu sou o obscuro e paciente pescador de pérolas, que mergulha nas aguas mais profundas e sobe de mãos vazias e cara roxa. Uma atracção fatal puxa-me para os abismos do pensamento, para os recônditos mais inacessíveis que nunca param de fascinar os fortes. Vou passar a minha vida a a olhar para o oceano da arte, onde outros viajam ou lutam; e de tempos a tempos vou-me entreter a mergulhar para apanhar aquelas conchas verdes e amarelas que ninguém vai querer. Vou ficar com elas para mim e cobrir com elas as paredes da minha cabana.

 

BARNES, Julian, 1846O papagaio de Flaubert, Lisboa, Quetzal, 2019, pp. 40-41

O crepúsculo do contemporâneo

“Tornar visível o tempo, a força do tempo”. Talvez se situe aqui o lugar, ou “sem o lugar” do Contemporâneo. Ele é este movimento entre o antes e o depois. Uma dança ao ritmo de tempos e de contratempos, num permanente desejo de acertar o passo com o par. É o movimento entre o dia e a noite, o crepúsculo já esbatido do que foi, a possibilidade do que ainda há-de vir a ser numa nova manhã. O contemporâneo “não é. Torna-se. Há-de vir. Devir”. É um trabalho, um processo de construção, um movimento, como se de um movimento de dança se tratasse, movimento que precisa de todas as partes do corpo, do espaço e do tempo para conseguir ser.

COSTA, Paula Cristina, O Crepúsculo do contemporâneo, Lisboa, Passagens, 2020, pp. 95-96.


sábado, 10 de julho de 2021

Olhos


 

Tenho pena dos romancistas que têm de mencionar os olhos das mulheres; a escolha é tão limitada, e seja qual for a cor escolhida traz inevitavelmente implicações banais. Tem olhos azuis: inocência e honestidade. Tem olhos negros: paixão e profundidade. Tem olhos verdes: rebeldia e ciúme. Tem olhos castanhos: digna de confiança e cheia de senso comum. Tem olhos violeta: é um romance de Raymond Chandler.

BARNES, Julian, O papagaio de Flaubert, Lisboa, Quetzal, 2019, pp.98-99.

terça-feira, 6 de julho de 2021

RISCAS


                                                             

                                                            RIA FORMOSA, 2019

 

sexta-feira, 2 de julho de 2021

A visão do Turismo segundo Ary dos Santos

Visitar este país
até à última gota:
o porco e o Porto     a bola e a bolota
o que é como quem diz
itinerar a a derrota

Tudo tem lugar no mapa
Paris Washington Moscovo
em Itália vê-se o papa
em Lisboa vê-se o povo.


Welcome Bienvenue Salud Willkommen Viva
 sífilis saúda-vos saúda-vos a estiva
desta carga de heróis em carne viva
nociva mas barata
vindes matar a sede com uva
beber o sumo do ócio que nos mata.



SANTOS, Ary dos, O Turismo, Vinte anos de poesia, Lisboa, Círculo de Leitores, 1984, p. 103

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Venho de férias



Chego de longe. Venho de férias. Estou cansado.
Já suei o suor de oito séculos de mar
o tempo de onze meses de ordenado;
por isso, meu amor, viajo a nado
não por ser português mal empregado
mas por sofrer dos pés
e estar desidratado.

SANTOS, Ary dos, Vinte anos de poesia, Lisboa, Círculo de Leitores, 1984, p. 75

Igreja de Santa Maria da Alcáçova









A igreja de Santa Maria da Alcáçova, em Montemor-o-Velho, remonta ao século XI, mas as reconstruções e acrescentos que se realizaram ao longo de vários séculos alteraram a sua traça primitiva. Foi reedificada definitivamente no primeiro quartel do século XVI, período de afirmação, em Portugal, do estilo manuelino (obra atribuída ao arquiteto Francisco Pires, sob a ordem do bispo-conde D. Jorge de Almeida).

A igreja apresenta uma fachada de grande sobriedade. O portal, em arco ogival, é encimado por pedras de armas do bispo-conde D. Jorge de Almeida. A frontaria é rematada por empena triangular, tendo do lado direito a torre sineira. A entrada lateral, em estilo manuelino, é enquadrada por um arco polilobado. O interior divide-se em três naves (ritmadas por uma série de arcos quebrados suportados por colunas de fustes espiralados), terminadas por capelas. Esta igreja é ornamentada por trabalhos de escultura de várias épocas, como a Nossa Senhora do Ó e o Anjo da Anunciação de Mestre Pero (c.1330-1340).

A vida é a realidade mas eu prefiro a leitura

Para alguns, a Vida é rica  e cremosa, feita segundo uma antiga receita caseira e só com produtos naturais, enquanto a Arte é um pálido produto comercial que consiste basicamente em corantes e sabores artificiais. Para outros, a Arte é a mais verdadeira das coisas, plena, movimentada e emocionalmente satisfatória, enquanto a Vida é pior que o pior dos romances: falha de enredo, povoada de maçadores e de velhacos, parca de espírito, envolta em incidentes desagradáveis e conducente a um desenlace doloroso e previsível. Os apoiantes do segundo ponto de vista tendem a citar Logan Pearsall Smith: "AS pessoas dizem que a vida é a realidade; mas eu prefiro a leitura".

BARNES, Julian, O papagaio de Flaubert, Lisboa, Quetzal, 2019, pp. 219-220.