- Não te zangues. Estou de muito mau humor. Preciso de desabafar.
- Calha bem. Eu também estou de mau humor. Mas tu, porquê?
- Porque estou zangado comigo. Porque é que aproveito todas as ocasiões para me sentir culpado?
- Isso não é grave.
- Sentirmo-nos culpados ou não. penso que tudo se resume a isto. A vida é uma luta de todos contra todos. É sabido. Mas como se desenrola essa luta numa sociedade mais ou menos civilizada? As pessoas não podem atirar-se umas contra as outras assim que se veem. Em vez disso, tentam lançar sobre o outro o opróbrio da culpabilidade. Ganhará aquele que conseguir tornar o outro culpado. Perderá quem confessar o seu erro. (...)
- Ah, coitado de ti, pertences por conseguinte, também tu ao exército dos desculpadores. Pensas poder lisonjear o outro através das tuas desculpas.
- Exactamente.
- E enganas-te. Quem se desculpa declara-se culpado. E se tu te declaras culpado, encorajas o outro a continuar a injuriar-te, a denunciar-te publicamente, até à tua morte. São essas as consequências fatais da primeira desculpa.
KUNDERA, Milan, A Festa da Insignificância, Alfragide, D. Quixote, 2014, pp. 61-62.