sábado, 30 de março de 2024

Nunca estou sozinho

Como já não quero explicar-me

tornei-me uma pedra

Como já não desejo ninguém

nunca estou sozinho


COHEN, Leonard, A Chama, Lisboa, Relógio d´Água, p. 247.

Rua dos Mercadores




 Évora 

Indústria


Não sei ser útil, como a chuva
Nas raízes das árvores, 
Ou o osso que o cão fareja:
Já tentei - se tivesse
De dançar como uma abelha,
Em frente da colmeia,
De certo erraria os passos
E indicaria um rumo estéril.

O destino, erros na transcrição 
De aminoácidos, uma educação 
Inadvertidamente condenada
Ao fracasso? Já tive
Momentos de felicidade, 
Ignorando mãos, gestos,
Propósitos. Temo que,
Um dia destes, a minha
Morte não sirva para nada.


OLIVEIRA, José Carlos, Jangada in De passagem,  Porto, Assírio e Alvim, 2018, p. 33.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Não me esqueças


Uma estação para o amor feroz,
O arco reluzente em torno de ténues
Fios de sombra:
Não os esqueças 
(...)

O areal tardio onde abandonámos
A língua que estiliza a fala,
Ainda sem confins ou iminências para olhos cansados.

Alguns avanços e abundantes 
Os tropeços e amparos,
Levitações que acertaram ao lado o batimento
Dos nossos corações transitórios.

E portanto - não te esqueças:
Sempre certo o sobressalto, a espantosa avaria 
Nesses pequenos órgãos
De saldar permanências.

TAVARES, Paulo, Órbitas, Porto, Assírio e Alvim, 2023, p.67.

domingo, 24 de março de 2024

Para quem não é nada, como um rio, o correr deve ser vida

Bernardo Soares  - PESSOA, Fernando, Tenho medo de partir - um livro de viagens, Lisboa, Guerra e Paz, 2018, p. 156.


Se um dia houver domingo à tarde

 

se um dia houver

domingo à tarde 


uma canção

que possa dizer-se devagar

para que nunca se acabem

as  coisas que nos fazem

sorrir


que nos fazem pensar

que haverá sempre chuva

e dias como este


duas ou três mãos 

à nossa volta um beijo

um abraço um gesto largo e autêntico


uma palavra que tenha

a forma de barco


PIRES, Carlos Lopes, Se houver domingo à tarde, Leiria, Hora de Ler, 2021, p. 12.

sábado, 23 de março de 2024

Há ambientes que nos dão raiva em vez de bondade


... acompanhava a prece de uma súbita raiva por Deus, por me haver humilhado e colocado em perigo num ambiente onde se esperaria encontrar as pessoas mais bondosas, as que teriam por ofício conduzir os santos ao seu esplendor.

MÃE, Valter Hugo, Contra mim, Porto, Porto Editora, 2020 p. 238.

Passageira da noite


Em cada estrela cadente 
Que vai perder-se no rio
Uma parte de mim parte
No mistério do navio.

Sou passageira da noite,
Num veleiro de luar.
O porto donde embarquei 
É onde devo ir parar.

A onda que vem à praia
E volta de novo ao mar,
Abriu um lírio na areia
Que o vento vem desfolhar!

Passam navios ao longe
Num jeito de não parar!....

CORREIA, Natália  in PEDREIRA, Maria do Rosário, DUARTE, Aldina, Esse fado vaidoso, Lisboa, Quetzal, 2022, p.p. 166-167.


Vídeo e arte

 


Museu Pompidou Metz, 2022

Praia do Amado hoje


 Portimão 

Poema de Natália Correia



 

Trepando por aí fora











 Travessa da Bota

Páscoa em Portimão






 Jardim Bivar

sexta-feira, 22 de março de 2024

Cada dia/ que não sei de ti...

cada dia

que não sei de ti

não é a mim que encontro

porque repito e repito

palavras actos e omissões


e ou e venho

por ruas e mais ruas


vezes sem conta

sou o caminho que vai

ao desencontro


de onde nunca estás


PIRES, Carlos Lopes, Se houver domingo à tarde, Leiria, Hora de Ler, 2021, p. 193.

Primavera


A Primavera vem dançando

com os seus dedos de mistério e de turquesa

Vem vestida de meio dia e vem valsando

entre os braços dum vento sem firmeza


Nu como a água o teu corpo quieto e ausente



Só este  inquieto esvoaçar do teu sorriso

Loiro o rosto o olhar não sei se mente

se de tão negro e parado é um aviso


Ai, a Primavera vai passando

com os seus dedos de mistério e de turquesa

Segue Primavera vai cantando

Que será do nosso amor nesta praia de incerteza


RODRIGUES, Urbano Tavares, Poesia - Horas de vidro, Alfragide, Publicações D. Quixote, 2010,  p. 43.

quinta-feira, 21 de março de 2024

Uma abelha na flor


 Évora 

Simplesmente... Alentejo







 Torre de Coelheiros, Évora

Colher poemas


Nem que cresçamos sem casar. Ainda haverá beleza e poemas. Em todas as clausuras e adiamentos se colhem poemas.


MÃE, Valter Hugo, Contra mim, Porto, Porto Editora, 2020,  p. 280.

Como não sei o que é o amor

 

como não sei

o que é o amor

fui perguntar a um pássaro


e perguntei-lhe porque voa

e que espécie de ar

o sustenta

o quê


porque geralmente 

não sei o que é o amor

não sei


e o pássaro

que possui o prodígio

dos impossíveis


pousou 

no meu coração


PIRES, Carlos Lopes, Se houver domingo à tarde; Leiria, Hora de Ler, 2021, p. 64.

A história humana é feita de muita atrocidade

(...) a história humana é feita de muita atrocidade. O ideal seria que pudéssemos corrigir os males passados, ou, melhor ainda, que eles nunca tivessem acontecido.  Mas nós não temos esse poder e, se o tivéssemos,  se calhar não saberíamos usá-lo. Já seria muito bom que os Estados reparassem as barbaridades e injustiças actuais, aquelas que estão ao alcance da sua mão. Ir para além disso, culpabilizar um qualquer povo por acontecimentos ocorridos há centenas de anos, é um princípio de responsabilização retroactiva que não tem sentido.


MARQUES, João Pedro, Combates pela verdade - Portugal e os escravos, Lisboa, Guerra e Paz, 2020, p.20.

Flores nos Açores

 





















Adoro este colorido açoriano!