domingo, 19 de março de 2017

Sonhar com o meu pai

 Há já muitos anos, aconselharam-me a ler o livro dos persas sobre os mortos. Não li. Mas talvez devesse. Gostava de perceber porque aparecem nos sonhos. A mim, pelo menos. Ultimamente cada vez mais. Sou eu que me aproximo deles ou eles que estão a aproximar-se de mim? E porquê? Mero acaso, capricho do sonho? Ou será que os mortos regressam assim e só no sonho e pelo sonho podem voltar a comunicar connosco?
Meu pai está a meu lado, agora quase todas as noites. Ao contrário do que se passa com outros, em outros sonhos, o seu rosto é perfeitamente visível e a paisagem do sonho não é difusa. Mas não conseguimos conversar. Ele tenta dizer-me qualquer coisa, por vezes com uma expressão de urgência, mas mexe os lábios e não sai som nenhum. Pelo menos eu não oiço. E o mesmo se passa de cá para lá. Quero falar-lhe mas fico sem voz. Ou então não consigo articular. Penso numa combinação que fizemos. O primeiro que morresse tentaria comunicar com o outro. Creio que é essa a ansiedade do meu pai nos sonhos. Quer dizer-me que está a cumprir o prometido.

ALEGRE, Manuel, Tudo é e não é, Alfragide, Publicações D. Quixote, 2013, pp.35-36

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