sábado, 21 de setembro de 2024

Grandes são os desertos

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida. 


PESSOA, Fernando, Tenho medo de partir - um livro de viagens, Lisboa, Guerra e Paz, 2018, p.92.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Tu tens de aprender

Tu tens de aprender a guardar as coisas de pensar. Se souberes escrever, as folhas de papel serão caixinhas onde podes arrumar com palavras tudo aquilo que não queres esquecer. E as folhas de papel, tão planas e aaparentemente vazias, adquiriram fundura, uma imensidão inesperada, porque, se eu soubesse escrever pirilipampo, para sempre um pirilampo estaria ali, talvez até de cauda acesa, à minha espera.

MÃE, Valter Hugo, Contra mim, Porto, Porto Editora, 2020 p.51.


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Babel

E todos tinham uma língua igual

ciosamente amada por noites de luar,

por dias claros 


Com ela nomeavam os sentidos

das coisas sem sentido antes de ser,

por ela se espalhavam na memória,

pois a memória era também de todos

e a todos preenchia o pensamento.


E se o céu era alto e eles fortes

no poder todo que a palavra dá.

e se o céu oferecia habitação

Às aves e às nuvens e ao sol,

porque não conquistá-lo em desafio 

profano?


Diz-se que a punição surgiu precisa

em exacta medida para o crime,

que a confusão cresceu junto às palavras,

ensombrado o silêncio outrora amado,

descompassado nos dias

e as coisas


Diz-se que a punição se cumpriu justa

no divino saber



Mas foi decerto

gesto de ciúme e

talvez quem sabe afirmação de quem 

já não tem demais céus


a conquistar 


AMARAL, Ana Luísa, Ágora, Porto Assírio e Alvim, 2019, p.p. 101-102.

Baptismo

Os mais difíceis poemas onde falo de amor

são aqueles em que o amor contempla.


O amor esquece ao contemplar,

esquece que não existe  encantado olhar

um raio anónimo sob o vento mais leve.


Contempla, amor, contempla.


E vai criando o nome que darás ao raio.


 SENA, Jorge de, Coroa da Terra, Assírio e Alvim, 2021, p. 33.