quinta-feira, 2 de abril de 2015

Portugal é um torvelinho de misérias

Basta pegar num jornal, basta ver um noticiário de televisão, basta ouvir a rádio, basta entrar numa conversa de amigos, para se ver que Portugal é um torvelinho de misérias e não sai da cepa torta. (...) Já não é uma questão de fado em Alfama, nem de negro fadário, nem de simples má vida... É uma questão de sanidade pública. Regressou-se aos tempos do caciquismo, do nepotismo, do oportunismo, do corporativismo, do imediatismo, da inconsistência política, da negociata sem freio, da especulação desnorteante, do endividamento excessivo, da corrupção desbragada, das fraudes a torto e a direito, das crises da Justiça, das crises da saúde, das crises da agricultura, das crises da educação, das crises da segurança das pessoas, das crises de tudo e mais alguma coisa, da evasão fiscal, da derrapagem dos gastos públicos, do descalabro, da descida espectacular de todos os indicadores para nos colocarem já nem sequer na cauda, mas no olho do cu da Europa, olha, parece um fado corrido mas é corrido da degradação (...) das insatisfações grátis, do deixa andar, das promiscuidades extraordinárias, dos escândalos de meia tigela e dos escândalos de alto gabarito, do futebol como actividade política e empresarial, do desporto como negócio, da política como negócio, da vida como negócio, dos erros repugnantes de português, das colunas sociais pirosas, da falta de qualificações, da falta de classe, da falta de nível, do subsídio, da mendicância, do emprego público, da preguiça, do esmoricemento, do atraso irrecuperável, da sem-vergonha. (...)
E toda a gente sabe que é assim, que está tudo podre,mas não reage, toda a gente é de uma passividade e de uma ignorância de bradar aos céus, ... toda a gente se vai alheando dos grandes problemas numa desgarrada alucinada em favor do que é mais imediato e acessório, em favor dos grandes chavões que não servem rigorosamente para nada, em favor da grande... bacanal, da grande orgia em que todos decretam a primeira coisa que lhes vem à cabeça e ficam muito satisfeitos com a figura que fizeram, em favor da televisão mais cretinizante do nosso tempo. Toda a gente tem o que merece. Portugal entra no século XXI como o país das coisas mal feitas e das imbelicidades anacrónicas
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MOURA, Vasco Graça, Meu amor, era de noite, Lisboa, 3.ª edição, Quetzal Editores, 2002, p.p. 46-48.

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