O calor abrandou, para logo voltar com quarenta graus à sombra. No interior dos dias o sol a ferver queima decisões, projectos: o sono amolece os trabalhos burocráticos, por vezes gritos coléricos perfuram o ardor das tardes.
A gente da cidade que ainda não foi para o Algarve, ou não tem já dinheiro para férias, despeja-se aos fins de semana na Costa da Caparica. Muitos gastam o que podem e o que não podem.
Há quem procure o Jardim das Plantas ou a Tapada da Ajuda, onde encontra capelas vegetais e uns vestígios de frescura. No seio do calor sonha o peso dos desejos entre sonos irregulares.
Nas praças adormecidas de Lisboa, onde vegetam reformados e protectores de pomboos e pardais, passeia também o inominável horror do fim: muita gente anónima e velha e alguns sem-abrigo têm morrido com o calor, tanto ou mais do que os bombeiros e os camponeses que perderam a vida e os haveres, entre chamas, nas florestas consumidas da Baeira, do Alto Alentejo e de Monchique.
O sol chispa no espelhado do granito imaginário de algumas miragens de pedra. Na velha Lisboa lindíssima que desce para o Tejo, desprosperando cada dia mais, abrem-se devagar umas poucas esperanças de mudança ao sopro húmido do rio.
RODRIGUES, Urbano Tavares, Prosa - O Eterno Efémero, Alfragide, Publicações D. Quixote, 2011, pp.129-130.
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