Lançada vai pelas praias da pureza
a poetisa angélica com os seus acólitos
braços de luz saem-lhe da boca
e o mar inunda-lhe a vagina.
CARVALHO, Armando Silva, Activo, O País das minhas vísceras, Língua morta, 2021, p. 210.
Lançada vai pelas praias da pureza
a poetisa angélica com os seus acólitos
braços de luz saem-lhe da boca
e o mar inunda-lhe a vagina.
CARVALHO, Armando Silva, Activo, O País das minhas vísceras, Língua morta, 2021, p. 210.
Será que não percebes que o passado, imcluindo ontem, foi totalmente abolido? Se subistir algures, será numa mão-cheia de objectos sólidos aos quais não estão associadas palavras, como aquele pedaço de vidro ali. Já não sabemos quase nada, literalmente, sobre a Revolução nem sobre os anos que antecederam a Revolução. Todos os documentos foram destruídos ou adulterados, todos os livros foram reescritos, todos os quadros foram pintados por cima, todas as estátuas e ruas e prédios foram rebatizados, todas as datas foram alteradas. É um processo que continua dia após dia, minuto após minuto. A História parou. Não existe senão um presente interminável no qual o Partido tem sempre razão.
ORWELL, George, 1984, Alfragide, D. Quixote, 2019, p.174.
Guardarás numa caixinha virtual
o que não fiz por ti,
a mão que não chegou à sobrancelha
que nem aflorou,
o beijo repetido nas palavras
sem que o tacto
o multiplicasse qual se desejava.
Nessa caixa de nada, não tardará depois
a não estares só tu,
a não estar só eu,
a estarmos só os dois.
CARVALHO, Armando Silva, O País das minhas vísceras, s.l., Língua Morta, 2021, p. 15.
Não tens noção
de quanto o corpo é corpo
no desejo
Anjo
voando sobre
o que é baixo
Sob
voando sob
o que é por baixo
HORTA, Maria Teresa, As palavras do corpo, Lisboa, 2.ª edição, Publicações D. Quixote, 2014, p. 172.
Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra
De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas
Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece.
[Parabéns X P, hoje fazes 44, eu espero que sejas feliz]
ANDRESEN, Sophia
de Mello Breyner, O Nome das coisas, Assírio & Alvim, 1.ª edição, 2015, p. 38.
Tomai, este é o meu corpo:
formas e símbolos.
Fora de mim, o meu reino
desmembra-se dentro de mim.
E o que fala falta-me
dentro do coração.
E estou sozinho fora de mim
como um coração fora de mim.
PINA, Manuel António, Todas as palavras - poesia reunida, Porto, Assírio e Alvim, 2012, p. 141.
Refeito aragem, pentearei os montes
sem já poder dizer o que não disse,
muito menos fazer, e muito menos dar.
Depressa me não verás, nem o amor
soltará seu tímido vagido, nem será
o banco de jardim onde te sentas:
pois em nenhum lugar passará a brisa
que nem sequer de ti terá saudade,
e assim te pagará com negação
os momentos, mementos, os teus olhos.
TANEM, Pedro, Rua de nenhures, Alfragide Publicações D. Quixote, 2013, p. 41.
HAY, Louise , HOLDEN, Robert, A vida ama-me, s.l., Pergaminho, 2015, p. 32.
Terceira, Açores |
Terceira, Açores |
JORGE, Lídia, Em todos os sentidos, Alfragide, 2.ª edição, Publicações D. Quixote, 2020, p. 13.
Cerceámos os laços entre filhos e pais, entre um homem e outro homem, e entre um homem e uma mulher. Já ninguém se atreve a confiar numa mulher ou num filho ou num amigo. Mas no futuro, deixará de haver mulheres e amigos. As crianças serão retiradas às mães à nascença, tal como se tira ovos a uma galinha. O instinto sexual será erradicado. A procriação será uma normalidade anual como a renovação das senhas de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Os nossos neurologistas estão neste preciso momento a trabalhar nesse sentido. Não haverá lealdade, excepto a lealdade para com o Partido. Não haverá amor, excepto o amor com o Grande Irmão. Não haverá riso, excepto o riso do júbilo com a derrota de um inimigo. Não haverá arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos omnipotentes, deixaremos de precisar da ciência. Não haverá distinção entre beleza e fealdade. Não haverá arte, nem literatura, nem ciência. Todos os prazeres concorrentes serão destruídos (...) Haverá sempre a embriaguez do poder, cada vez mais intensa e cada vez mais subtil. Haverá sempre, em todos os momentos, o entusiasmo da vitória, a sensação de espezinhar um inimigo que está indefeso.
ORWELL, George, 1984, Alfragide, D. Quixote, 2019, pp. 294-295.
A maior parte das vezes, para escapar ao sofrimento refugiamos-nos no futuro. Julgamos que a pista do tempo tem uma linha marcada para lá da qual o sofrimento presente há-de cessar.
KUNDERA, Milan, A Insustentável leveza do ser, Alfragide, D. Quixote, 32.ª edição, 2015, p.210.
O amor é muito mais que um sentimento ou uma emoção. Ele é a nossa verdadeira natureza. Na verdade, o amor é o nosso ADN espiritual, a canção do nosso oração, a consciência da nossa alma.
HAY, Louise, HOLDEN, Robert, A vida ama-me, s.l., Pergaminho, 2015, p. 23.
O meu amor não cabe num poema - há coisas assim,
que não se rendem à geometria deste mundo;
são como corpos desencontrados da sua arquitectura
ou quartos que os gestos não preenchem.
O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil
a agitação dos dedos na intimidade do texto -
a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías
nem a candura da mão que protege a chama que estremece.
O meu amor não se deixa dizer - é um formigueiro
que acode aos lábios como a urgência de um beijo
ou a matéria efervescente dos segredos; a combustão
laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios
de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,
ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.
O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras
com a nudez do teu nome - é um fantasma que estrebucha
no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.
Um verso que o vestisse definharia sob a roupa
como o esqueleto de uma palavra morta. Nenhum poema
podia ser o chão da sua casa.
PEDREIRA, Maria do Rosário, Poesia reunida, Lisboa, Quetzal, 2012, p. 94.