sábado, 29 de outubro de 2022
Esqueço-me
Esqueço-me de ouvir cheirar a Terra,
esqueço-me que vivo... E anoitece.
SENA, Jorge de, Coroa da Terra, Porto, Assírio e Alvim, 2021, p. 108.
quarta-feira, 26 de outubro de 2022
Crónica dos filhos de Viriato
História: não a que vem nos livros
com fogueiras de Deus nos campos de Sant`Ana
com santos e guerreiros e façanhas e milagres
com bandeiras e naus no Terreiro do Paço.
Dos mitos nada sei. Falo dos vivos
dos que vão além da Taprobana
no mar de um íntimo cansaço.
(...)
Dos homens falo. Nada sei dos mitos.
Homens de mil trezentos e oitenta e cinco
esperando em mil novecentos e sessenta e três
a verdadeira independência do país.
Dos homens falo. Suas tragédias seus ritos
sua maneira de perder e seu afinco
em tentar mais uma vez.
E ficam uns em Sagres vão outros para os Brasis.
ALEGRE, Manuel, Praça da Canção, Lisboa, 5.ª edição, D, Quixote, 2015, pp. 50 -51.
terça-feira, 25 de outubro de 2022
Os ovos d' oiro
Pelo cu desta galinha
sai um ovo
E sai a caca.
CARVALHO, Armando Silva, O País das minhas vísceras, Língua morta, 2021, p. 103.
segunda-feira, 24 de outubro de 2022
sábado, 22 de outubro de 2022
sexta-feira, 21 de outubro de 2022
Disseram que havia sol
Disseram que havia sol
que todo o céu descobria
Que nas ramagens pousavam
os cantos das aves loucas
Disseram que havia risos
que as rosas se desdobravam
que no silêncio dos campos
Se davam corpos e bocas
Mais disseram que era tarde
Que a tarde já descaía
Que ao amor não lhe bastavam
Estas nossas vidas poucas
E disseram que ao acento
De tão geral harmonia
Faltava a simples canção
Das nossas gargantas roucas
Ó meu amor estas vozes
São os avisos do tempo
SARAMAGO, José, Provavelmente alegria, Lisboa, Porto Editora, 2014, p. 69
quinta-feira, 20 de outubro de 2022
quarta-feira, 19 de outubro de 2022
segunda-feira, 17 de outubro de 2022
O amor está na memória poética?
Parece que existe no cérebro uma zona perfeitamente específica que poderia chamar-se memória poética e que regista aquilo que dá à nossa vida a sua beleza própria. Desde que Tomas conhecera Tereza, nenhuma mulher tinha o direito de deixar qualquer marca, por mais efémera que fosse, nessa zona do seu cérebro.
KUNDERA, Milan, A Insustentável leveza do ser, Alfragide, D. Quixote, 32.ª edição, 2015, p.260
domingo, 16 de outubro de 2022
sábado, 15 de outubro de 2022
TUDO
Tudo o que a vista toca, a língua cheira,
O ouvido sente, a pele escuta, o nariz fita
Na gramática do corpo na tabuada da alma
As minhas linhas férreas correm
No leito dos teus rios.
Éramos duas crianças a caminho
Da escrita.
CARVALHO, Armando Silva, Dois rostos, O País das minhas vísceras, Língua morta, 2021, p. 293
Todos temos tendência para culpar a força e ver na fraqueza uma vítima inocente
KUNDERA, Milan, A Insustentável leveza do ser, Alfragide, D. Quixote, 32.ª edição, 2015, p.388.
sexta-feira, 14 de outubro de 2022
Brilhante
Se desejas tornar-te tão brilhante quanto os Anjos
despires-te das tuas roupas não será suficiente.
Despe-te completamente de ti próprio
RUMI, O Pequeno livro da vida - o jardim da alma, do coração e do espírito, Alma dos Livros, 2020, p. 64.
Procuro desenvicilhar-me
Procuro desenvencilhar-me numa última veleidade. Não tanto para fugir da loucura – quem sabe – como pera medir melhor a força do meu Mistério.
Mas embalde tento lançar luz. Em tudo isto há pequeninas certezas, reais, insofismáveis – que me confirmam o duvidoso,em maior significação.
Não me engano! Não me engano! O erro e a Sombra existem-Me.
Ao mesmo tempo prevejo que o mais fantástico, o maior, o mais sombrio, ainda não foi descoberto.
Esperaremos…
SÁ-CARNEIRO, Mário, Céu em fogo, Lisboa, Planeta de Agostini, 2006, p.67
Agora?
Agora só resta
tornares-te
o poema
MENDONÇA, José Tolentino, Papoila e o monge, Assírio e Alvim, 2019, p 173
Eu mereço o amor e a vida ama-me
Eu mereço o amor e a vida ama-me.
Perdoo-me por todos os momentos
Em que temi não ser digno de receber amor.
Eu mereço amor e a vida ama-me.
Perdooo-me por me ter julgado
E por não ter acreditado na minha virtude.
Eu mereço amor e a vida ama-me.
Perdoo-me por me sentir indigno
E por acreditar que não mereço amor.
Eu mereço amor e a vida ama-me.
Perdoo-me por todas as vezes em que
Me critiquei e me ataquei.
Eu mereço amor e a vida ama-me.
Perdoo-me por me ter rejeitado
E por ter desistido de mim.
Eu mereço amor e a vida ama-me,
Perdoo-me por duvidado de mim
E por não confiar em mim.
Eu mereço amor e a vida ama-me.
Perdoo-me pelos meus erros,
Eu mereço amor e a vida ama-me.
Peço perdão para que possa aprender
Aceito o perdão para que possa crescer.
Eu mereço amor e a vida ama-me.
HAY, Louise , HOLDEN, Robert, A vida ama-me, s.l., Pergaminho, 2015, pp. 99-100.
Agora sonho
Em criança fui imortal. Em adolescente
rebelei-me contra o que agora sou.
Em jovem fui selvagem. Fiz sofrer
e sofri muito mais do que quis.
Pouco a pouco a morte (era semente
e parecia alheia) foi crescendo
dentro de mim, feliz, recuperando
o que era seu e eu soube de que era feita
a vida já bem tarde. Na velhice
beijava a água e abraçava o ar
como o doente abraça a esperança
ou o náufrago a espera. Nunca o mundo
foi tão belo como antes de partir.
Agora já não existe. Agora sonho
que o que já não sou volta a nascer.
PIQUERAS, Juan Vicente, Instruções para atravessar o deserto - poemas escolhidos, Porto, Assírio & Alvim, 2019, p 77.
quarta-feira, 12 de outubro de 2022
Nós
Nós há muito que lavamos o rosto na arte
Amável dos versos
Ou de qualquer outro artesanato
Do sentimento.
Estamos e não sabemos mais
Estar neste mundo.
Mas não somos nem nunca fomos
Doutro.
CARVALHO, Armando Silva, O País das minhas vísceras, s.l., Língua Morta, 2021, p. 303-304.
segunda-feira, 10 de outubro de 2022
Heranças do Comunismo
- O império soviético caiu porque já não era capaz de domar as nações que queriam ser soberanas. Mas estas nações são hoje menos soberanas que nunca. Não podem escolher nem a própria economia, nem a sua política externa, e nem sequer os slogans da sua publicidade.
- A soberania nacional é desde há muito um ilusão - disse N.
- Mas se um país não é independente e nem sequer deseja sê-lo, haverá ainda alguém disposto a morrer por ele?
- Não quero que os meus filhos estejam dispostos a morrer.
- Então eu digo de outra maneira: haverá ainda alguém que ame este país?
N. afrouxou o passo: "Josef", disse ele tocado. "Como pudeste tu emigrar? És um patriota!". Depois, muito sério: - Morrer pelo país é uma coisa que já não existe. Talvez para ti, durante o tempo da tua emigração, o tempo tenha parado. Mas eles já não pensam como tu.
KUNDERA, Milan, A Ignorância, Porto, Edições Asa, 2001, p. 134
sábado, 8 de outubro de 2022
Escrever poemas
- Sou demasiado velho para voltar para trás e demasiado novo para esquecer as minhas esperanças brilhantes. Sou demasiado inteligente para não ser crítico da minha fama, e o presente é demasiado importante para mim para me sentir em paz por causa dos louros que ganhei no passado. O elogio não tem valor, mas uma vez que o vejo pela primeira vez, como se esta fosse a primeira manhã da minha vida, que só há uma razão para escrever poemas: a única razão para escrever poemas é a actividade de todo o ser que se sente quando se escrevem poemas. Esta é a única justificação.
SCHWARTZ, Delmore, Nos sonhos começam as responsabilidades, Lisboa, Guerra e Paz, 2020, p. 98.
Poder
... ninguém toma o poder com a intenção de abdicar dele. O poder não é um meio, é um fim. Não se institui uma ditadura para salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para instituir a ditadura. O objectivo da perseguição é perseguir. O objectivo da tortura é torturar. O objectivo do poder é ter poder.
ORWELL, George, 1984, Alfragide, D. Quixote, 2019, p. 291
sexta-feira, 7 de outubro de 2022
quinta-feira, 6 de outubro de 2022
Talvez
Talvez algum poema por detrás do poema
Faça pousar o poeta como pura coisa
Na nau do mundo no lugar dos corvos
No meu olhar como a eterna criança.
CARVALHO, Armando Silva, O País das minhas vísceras, Língua morta, 2021, p. 296.
quarta-feira, 5 de outubro de 2022
terça-feira, 4 de outubro de 2022
Falsificar o passado
O passado, para além de mudar, estava em constante mudança. O que mais o atormentava com uma sensação de pesadelo era nunca ter compreendido claramente a razão para que a colossal impostura tivesse sido levada a cabo. Os benefícios imediatos de se falsificar o passado eram óbvios, mas o motivo derradeiro era misterioso.
ORWELL, George, 1984, Alfragide, D. Quixote, 2019, p. 90
segunda-feira, 3 de outubro de 2022
domingo, 2 de outubro de 2022
sábado, 1 de outubro de 2022
Mosteiro
O conjunto monumental do Mosteiro de Alcobaça constitui um dos mais notáveis e bem conservados exemplos da arquitectura e filosofia espacial Cisterciense.
Alcobaça foi a última fundação em vida de São Bernardo e o primeiro monumento integralmente gótico do país. A Abadia foi fundada em 1153, por doação de D. Afonso Henriques a São Bernardo de Claraval.
As obras de construção do actual edifício só se iniciaram por volta de 1178, arrastando-se por várias décadas, em consonância com as dimensões absolutamente excepcionais do monumento.
Em 1223, os religiosos ocuparam as instalações já construídas, seguindo um programa bipartido entre a oração e o trabalho manual - "Ora et Labora".
O local escolhido, com elevado potencial agrícola, correspondia à política cisterciense de desenvolvimento agrário. Construiu-se uma levada (desvio da água proveniente do Rio Alcoa) e procedeu-se à captação de água potável: sistema hidráulico que impressiona pelas soluções técnicas adoptadas. Todo o território envolvente foi polvilhado de granjas, vinhas, pomares e pântanos reconvertidos em terrenos aráveis pela prática do arroteamento.
A igreja, com 100 metros de comprimento, representa o maior espaço religioso gótico existente no país.
A sua planta, em forma de cruz latina, contempla um Deambulatório que integra nove capelas radiantes.
A verticalidade acentuada (mais de vinte metros de altura) confere-lhe uma beleza ímpar.
De salientar a adopção de arcobotantes no exterior da capela-mor.
O transepto deste templo acolhe actualmente os Túmulos de D. Pedro e D. Inês.
As dependências medievais constituídas pela Sala do Capítulo, o Refeitório, a Sala dos Monges e o Dormitório foram edificados nos séculos XIII e XIV. D. Dinis mandou construir o Claustro do Silêncio, o maior claustro medieval português.
Com D. Manuel, o Mosteiro é alvo de um novo ímpeto: o monarca manda construir a Sacristia Nova, o primeiro piso do Claustro de D. Dinis (Sobreclaustro), um novo cadeiral para a Igreja e uma Livraria cuja localização não se conhece. Deste vasto programa de intervenções, apenas resta o Atrium da Sacristia e o Sobreclaustro.
A cozinha, totalmente revestida de azulejos, data de 1752. Destacamos a sua imponente chaminé que assenta em oito colunas de ferro forjado bem como o tanque com água corrente proveniente da "Levada", testemunho da genialidade dos monges de Cister no que concerne à engenharia hidráulica.
A monumentalidade, beleza e despojamento desta abadia, lograram, por parte da Unesco, a classificação de Património da Humanidade em 1989.
FONTE: http://www.mosteiroalcobaca.gov.pt/pt/index.php?s=white&pid=197&identificador=at132_pt.doc
Pensar não me conduz a nada
Andar contigo como quem vai sem ir
Como quem está sem estar
O meu corpo sentado no teu movimento
Já sou onde estive já estou
Onde vou por ti
Sem andar, correr, sou quem está a ir.
Vejo o perto com o longe na cabeça. Em ti
Não há perda possível
O desastre é a utopia móvel.
Todo o desejo é por si só fantasma
Os vidros sobem na catedral minúscula
E os arcos de ar envolvem de sagrado o negro do meu rosto.
Parado salto de pensamento para pensamento
Com as mãos atadas à vista
O sexo não me ofende a viagem.
Pensar não me conduz a nada
Só tu
És branco por fora e escuro no meu transporte.
(...)
CARVALHO, Armando Silva, O País das minhas vísceras, s.-l., Língua Morta, 2021, p. 361
Lamentação de Outubro
Eu não sabia que o azul amanhã
é vago espectro do brumoso ontem;
que agitado por sopros de centúrias
o coração anseia arder, arder.
Sinto seu influxo, sua latência, e quando
quer as suas luminárias acender.
Mas a vida está chamando,
e já não é tempo de aprender.
Eu não sabia que teu sol, ternura,
dá ao céu das crianças a cor rosada,
e que, sob o loureiro, o herói rude
algo de criança tem de ter.
Oh, quem pudesse num tremor de criança
a uma alvorada de inocência renascer!
Mas a vida está a passar,
e já não é tempo de aprender.
Eu não sabia que a paz profunda
do afecto, os lírios do prazer,
a magnólia de luz da energia,
leva no seu brando seio a mulher
Minha fronte rendida nesse seio brando,
um homem de verdade poderia ser...
Mas a vida está a acabar,
e já não é tempo de aprender!
Porfírio Jacob in Um país que sonha - cem anos de poesia colombiana, Assírio e Alvim, s.l., 2012, pp. 48-49.
A ponte
Do vento fresco da tarde
Num casulo de silêncio
Onde os segredos e o ar
São as traves duma ponte
Que não paro de lançar
Fica-se a ponte no espaço
à espera de quem lá passe
Que o motivo de ser ponte
Se não para a construção
Vai muito maos da vontade
De estarem onde não estão
Vem a noite e o seu reecado
Sua negra natureza
Talvez a lua não falte
Ou venha a chuva de estrelas
Basta que o sono consinta
A confiança de vê-las
Amanhã o novo dia
Se o merecer e me for dado
Um outro pilar da ponte
Cravado no fundo mar
Torna mais breve a distância
Do que falta caminhar
Há sempre um ponto de mira
O mais comum horizonte
Nunca as pontes lá chegaram
Porque acaba o construtor
Antes que a ponte se entronque
Onde se acaba o trasnpor
Sobre o vazio do mar
Desfere o traço da ponte
Vá na frente a construção
Não perguntem de que serve
Esta humana teimosia
Que sobre a ponte se atreve
Abro as vidraças por fim
E todo o vento se esquece
Nenhuma estrela caiu
Nem a lua me ajudou
Mas a ruiva madrugada
Por trás da ponte aparece
SARAMAGO, José, Provavelmente alegria, Lisboa, Porto Editora, 2014, pp. 73-74