sábado, 1 de outubro de 2022

A ponte


Vidraças que me separam

Do vento fresco da tarde

Num casulo de silêncio

Onde os segredos e o ar

São as traves duma ponte

Que não paro de lançar


Fica-se a ponte no espaço

à espera de quem lá passe

Que o motivo de ser ponte

Se não para  a construção

Vai muito maos da vontade

De estarem onde não estão


Vem a noite e o seu reecado

Sua negra natureza

Talvez a lua não falte

Ou venha a chuva de estrelas

Basta que o sono consinta

A confiança de vê-las


Amanhã o novo dia

Se o merecer e me for dado

Um outro pilar da ponte

Cravado no fundo mar

Torna mais breve a distância

Do que falta caminhar


Há sempre um ponto de mira

O mais comum horizonte

Nunca as pontes lá chegaram

Porque acaba o construtor

Antes que a ponte se entronque

Onde se acaba o trasnpor


Sobre o vazio do mar

Desfere o traço da ponte

Vá na frente a construção

Não perguntem de que serve

Esta humana teimosia

Que sobre a ponte se atreve


Abro as vidraças por fim

E todo o vento se esquece

Nenhuma estrela caiu

Nem a lua me ajudou

Mas a ruiva madrugada

Por trás da ponte aparece


SARAMAGO, José, Provavelmente alegria, Lisboa, Porto Editora, 2014, pp. 73-74

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