sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Agora sonho

 

Em criança fui imortal. Em adolescente

rebelei-me contra o que agora sou.

Em jovem fui selvagem. Fiz sofrer

e sofri muito mais do que quis.

Pouco a pouco a morte (era semente

e parecia alheia) foi crescendo

dentro de mim, feliz, recuperando

o que era seu e eu soube de que era feita

a vida já bem tarde. Na velhice

beijava a água e abraçava o ar

como o doente abraça a esperança

ou o náufrago a espera. Nunca o mundo

foi tão belo como antes de partir.

Agora já não existe. Agora sonho

que o que já não sou volta a nascer.

 

PIQUERAS, Juan Vicente, Instruções para atravessar o deserto - poemas escolhidos, Porto, Assírio & Alvim, 2019, p 77.

 

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