domingo, 30 de abril de 2023

Amor: o brilho da espada / Que corta as veias do tempo

Amor: o brilho da espada

Que corta as veias do tempo.

E eu ebriamente enrolada

Na onda de um teu movimento.


As nossas sombras unidas

Na estrela de sermos após

Os mortos desta guerra perdida

Para a ganharmos além de nós.


Maliciosa criação do mundo

Que, fulmíneo, o Amor dará por findo.

Eu e tu afogados no fundo

Numa só boca a cantar no cimo.  



CORREIA, Natália, Antologia poética, Lisboa, D. Quixote, 2013, p. 74

Nocturno

Anoiteço sem lágrimas

e continuo a sofrer sem saber já exactamente

se sofro por ti que partiste

ou por esta despedida de mim



RODRIGUES, Urbano Tavares, Poesia - Horas de vidro, Alfragide, Publicações D. Quixote, 2010,  p. 80.

Mar da Povoação


 São Miguel 

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Embebo-me na solidão como uma esponja

Embebo-me na solidão como uma esponja

Por becos que conduzem a hospitais.

O medo é um tenente que faz a ronda

E a ronda abre sepulcros fecha portas;  


CORREIA, Natália, Antologia poética, Lisboa, D. Quixote, 2013, p. 114.

Estou aqui P


Adega da Cartuxa - Quinta do Valbom

Estou aqui construindo o novo dia

com uma expressão tão branda e descuidada

que dir-se-ia

não estar fazendo nada.

E, contudo, estou aqui construindo o novo dia.


GEDEÃO, António, Poemas - Uma antologia bilingue, Lisboa, Palavrão - Associação Cultural, 2015, p.84

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Regimes comunistas

Quem pensa que os regimes comunistas da Europa Central são exclusivamente obra de criminosos deixa na sombra uma verdade fundamental: é que os regimes comunistas não foram edificados por criminosos, mas por entusiastas, convencidos de que tinham descoberto a única via possível para o paraíso. E defendiam essa via com unhas e dentes, chegando inclusivamente a mandar matar muito boa gente por causa disso. Mais tarde, tornou-se claro como a luz do dia que o paraíso não existia e, portanto, que os entusiastas eram assassinos.

Então todos caíram em cima dos comunistas: eles é que eram responsáveis pela desgraça do país (que se encontrava pobre e arruinado), pela perda da independência nacional (o país tinha caído sob a alçada dos russos), pelos homicídios judiciais!

KUNDERA, Milan, A Insustentável leveza do ser, Alfragide, D. Quixote, 32.ª edição, 2015, p.224.

Sol no interior da igreja













 Igreja de São Francisco 

As vagas

Portimão 

As vagas vão e vêm na cadência do sangue

que ao coração acorre,

e ecoam bravamente como vozes antigas,

brados, imprecações, emparedadas vozes,

que em espasmos se prolongam acentuando a origem.

São vozes sibiladas, palavras que circulam

entre os destroços, e os roem mais que a água.


GEDEÃO, António, Poemas - Uma antologia bilingue, Lisboa, Palavrão - Associação Cultural, 2015, p.150

Daí o amor ser o meio

do homem divido em dois

e a pior metade é estarmos

à espera de sermos depois. 


CORREIA, Natália, Antologia poética, Lisboa, D. Quixote, 2013, p. 162.

Poesia popular


CHUMBO, Joaquim, in LEAL, Agostinho Crespo (P.de),  Aprender com o doente - A espiritualidade na alma alentejana, p. 23

Sou assim

Deus te abençoe, meu amigo,

Deus te dê o que desejas.

Que palpes, que oiças, que vejas

o sonho que anda contigo


Tudo claro é escuro em mim.

Não tenho asas nem rabo.

Não sou Anjo nem Diabo.

Sou assim


GEDEÃO, António, Poemas - Uma antologia bilingue, Lisboa, Palavrão - Associação Cultural, 2015, p. 63

25 de Abril em Évora










 

terça-feira, 25 de abril de 2023

25 de Abril sempre


ÉVORA 

 

Nesta hora

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda

Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo

Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio

E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

 

Meia verdade é como habitar meio quarto

Ganhar meio salário

Como só ter direito

A metade da vida

 

O demagogo diz da verdade a metade

E o resto joga com habilidade

Porque pensa que o povo só pensa metade

Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

 

A verdade não é uma especialidade

Para especializados clérigos letrados

 

Não basta gritar povo é preciso expor

Partir do olhar da mão e da razão

Partir da limpidez do elementar

 

Como quem parte do sol do mar do ar

Como quem parte da terra onde os homens estão

Para construir o canto do terrestre

- sob o ausente olhar silente de atenção –

 

Para construir a festa do terrestre

Na nudez de alegria que nos veste.

 

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, O Nome das coisas, Assírio & Alvim, 1.ª edição, 2015, pp. 55-56

Revolução

Como casa limpa

Como chão varrido

Como porta aberta

 

Como puro início

Como tempo novo

Sem mancha nem vício

 

Como a voz do mar

Interior de um povo

 

Como página em branco

Onde o poema emerge

 

Como arquitectura

Do homem que ergue

Sua habitação

 

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, O Nome das coisas, Assírio & Alvim, 1.ª edição, 2015, p.54

25 de Abril

As ruas ficaram saturadas de ideias

e dos gritos que, por força, iriam

fazê-las vingar. Entre o Verão

quente e o Novembro frio, quase


toda a gente pôde imaginar ser

quase feliz. Foi quando alguns

(terei de me incluir?) descobriram

que a polícia não era feita


de ideias, nem para ideias, mas

de conjecturas, cálculos de lucros

e taxas de juro - uma lição íngreme,

se comezinha: a desilusão acaba por chegar.



OLIVEIRA, José Alberto, Rectificação da linha geral, Porto, Assírio e Alvim, 2020, p. 14

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Até no sofrimento é preciso ter sorte

GEDEÃO, António, Poemas - Uma antologia bilingue, Lisboa, Palavão - Associação Cultural, 2015, p. 80

sábado, 15 de abril de 2023

Ruas alemãs












 SAARBURG

Explicação do país de Abril

País de Abril é o sítio do poema.

Não fica nos terraços da saudade

não fica em longes terras. Fica exactamente aqui

tão perto que parece longe.


Tem pinheiros e mar tem rios

tem muita gente e muita solidão

dias de festa que são dias tristes às avessas

é rua e sonho é dolorosa intimidade.


Não procurem nos livros que não vem nos livros

País de Abril fica no ventre das manhãs

fica na mágoa de o sabermos tão presente

que nos torna doentes sua ausência.


País de Abril é muito mais que pura geografia

é muito mais que estradas pontes monumentos

viaja-se por dentro e tem caminhos como veias

- os carris infinitos dos comboios da vida.


País de Abril é uma saudade de vindima

é terra e sonho e melodia de ser terra e sonho

território de fruta no pomar das veias

onde operários erguem as cidades do poema.


Não procurem na História que não vem na História.

País de Abril fica no sol interior das uvas

fica à distância de um só gesto os ventos dizem

que basta apenas estender a mão.


Mais aprende que o mundo é do tamanho

que os homens queiram que o mundo tenha:

o tamanho que os ventos dão aos homens

quando sopram à noite no País de Abril


ALEGRE, Manuel, Praça da Canção, Lisboa, 5.ª edição, D, Quixote, 2015, pp. 68-69.