sábado, 15 de junho de 2024

Primitivismo

Na esfera histórica e cultural do Ocidente, o primitivismo manifestou-se logo nos anos que se seguiram à descoberta das Américas, pois houve uma marcada tendência de viajantes e missionários para encararem esse Novo Mundo como algo próximo do ideal da Natureza, uma espécie de Jardim do Éden, onde os nativos pareciam gozar a inocência e a felicidade de um tempo anterior à Queda. É verdade que também houve quem discordasse deles e visse os índios como idólatras que cometiam pecados contra a natureza, e a América como um universo negativo, uma terra de canibalismo e de brutalidade.  Mas a ideia primitivista resistiu, atravessou os tempos, passou pelo Bom Selvagem de Rousseau, adquiriu fortíssimas reverbações românticas e tornou-se muito popular entre as pessoas politicamente correctas. Essas pessoas têm tendência para negar várias evidências porque se banham numa cultura que tem sido adubada e regada por séculos de ilusões primitivistas. 

No que respeita à história da escravatura, a principal evidência que se recusam a ver é a de que os não-ocidentais, africanos ou asiáticos foram, em muitos momentos,  gananciosos e cruéis. Na sua visão, ganância e crueldade, seriam um exclusivo dos brancos. Infelizmente, não foi nem é assim, e encontramo-las em profusão em todos os continentes,  ontem como hoje. (...)

A escravatura existiu em muitas partes do mundo e conheceu várias modalidades, que variaram consoante a época,  o local e os intervenientes. Independentemente das diferenças entre elas, todas tinham traços em comum, o principal dos quais era a vulnerabilidade. Era em primeiro lugar por isso que a escravatura era horrível. E era-o tanto na América como em África ou noutra parte do mundo. O escravo era, em qualquer tempo e local, um morto social e alguém que dependia única e exclusivamente daboapu má vontade do seu senhor ou senhora. Ou seja, era absolutamente vulnerável, como um órfão ou um desvalido. Nem sequer a sua voz e as suas palavras eram suas, como dizia acertadamente um ditado africano.

MARQUES, João Pedro, Combates pela verdade - Portugal e os escravos, Lisboa, Guerra e Paz, 2020, p. 112-113.

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