sábado, 27 de agosto de 2022

Canto peninsular

Estar aqui dói-me. E eu estou aqui

há novecentos anos. Não cresci nem mudei.

Apodreci.

Doem-me as próprias raízes que criei.



Foi a guerra e a paz. E veio o sol. Veio e passou

a tempestade.

Muita coisa mudou. Só não mudou

este monstro que tem a minha idade.


E foi de novo a guerra e a paz. Muita coisa mudou

em novecentos anos.

Eu é que não mudei. Neste monstro que sou

só os olhos ainda são humanos.


Quantas vezes gritei e não me ouviram

quantas vezes morri e me deixaram

nos campos da batalha onde depois floriam

flores e pão que do meu sangue se criaram.


Andei de terra em terra

por esse mundo que de certo modo descobri.

E fui soldado contra a minha própria guerra

eu que fui pelo mundo e nunca saí daqui.


Mil sonhos eu sonhei. E foram mil enganos.

Tive o mundo nas mãos. E sempre passei fome.

Eis-me tal como sou há novecentos anos

eu que não sei escrever sequer o próprio nome.


Falam de mim e dizem; é um herói.

(Não sei se por estar morto ou porque ainda não morri.)

Mas nunca ninguém disse  razão por que me dói

estar aqui.


ALEGRE, Manuel, Praça da Canção, Lisboa, 5.ª edição, D, Quixote, 2015, pp. 45 -46.

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