Estar aqui dói-me. E eu estou aqui
há novecentos anos. Não cresci nem mudei.
Apodreci.
Doem-me as próprias raízes que criei.
Foi a guerra e a paz. E veio o sol. Veio e passou
a tempestade.
Muita coisa mudou. Só não mudou
este monstro que tem a minha idade.
E foi de novo a guerra e a paz. Muita coisa mudou
em novecentos anos.
Eu é que não mudei. Neste monstro que sou
só os olhos ainda são humanos.
Quantas vezes gritei e não me ouviram
quantas vezes morri e me deixaram
nos campos da batalha onde depois floriam
flores e pão que do meu sangue se criaram.
Andei de terra em terra
por esse mundo que de certo modo descobri.
E fui soldado contra a minha própria guerra
eu que fui pelo mundo e nunca saí daqui.
Mil sonhos eu sonhei. E foram mil enganos.
Tive o mundo nas mãos. E sempre passei fome.
Eis-me tal como sou há novecentos anos
eu que não sei escrever sequer o próprio nome.
Falam de mim e dizem; é um herói.
(Não sei se por estar morto ou porque ainda não morri.)
Mas nunca ninguém disse razão por que me dói
estar aqui.
ALEGRE, Manuel, Praça da Canção, Lisboa, 5.ª edição, D, Quixote, 2015, pp. 45 -46.
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