quarta-feira, 15 de março de 2023

Neste preciso tempo, neste preciso lugar

No princípio era o Verbo

(e os açúcares

e os aminoácidos).

Depois foi o que se sabe.

Agora estou debruçado

da varanda de um 3.º andar

e todo o Passado

vem exactamente desaguar

neste preciso tempo, neste preciso lugar,

no meu preciso modo e no meu preciso estado!


Todavia em vez de metafísica

ou de biologia

dá-me para a mais inespecífica

forma de melancolia:

poesia nem por isso lírica

nem por isso provavelmente poesia.

Pois que faria eu com tanto Passado

senão passar-lhe ao lado,

deitando-lhe o enviesado

olhar da ironia?


Por onde vens, Passado,

pelo vivido ou pelo sonhado?

Que parte de ti me pertence,

a que se lembra ou a que se esquece?

Lá em baixo, na rua, passa para sempre

gente indefinidamente presente,

entrando na minha vida

por uma porta de saída

que dá já para a memória.

Também eu (isto) não tenho história

senão  de uma ausência

entre indiferença e indiferença.


PINA, Manuel António, Todas as palavras - poesia reunida, Porto, Assírio e Alvim, 2012, p. 252-253.

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