sexta-feira, 31 de maio de 2024

E se a morte me despisse


Andam palavras na noite
Cansadas de me chamar
Trago os meus lábios salgados
E algas no paladar.

Aberta a porta selada,
Sou pensada já não penso.
Se a musa fica calada
Como dizer o silêncio?

Inúteis os meus anéis 
Já os troquei por poemas,
Se hão-de perder-se os papéis 
Voam com as minhas penas.

Só sei que neste destino,
Vou atrás do que não sei...
E já me sinto cansada 
Dos passos que nunca dei.

Ficou entre nós o tempo
Que fica uma andorinha.
Deu-nos essa primavera
Porque deu tudo o que tinha.

Ficou a morte caída
Antes do tempo no chão 
E uma estátua dividida 
Pela linha do coração. 

Há dias em que sou monja, 
Há outros em que sou fêmea 
E,  embruxada na fogueira 
Do amor, ponho mais lenha.

Como se eu já existisse
Antes do sol e da lua
E se a morte me despisse
E eu não me sentisse nua.

Quando me derem por morta
Lágrimas nem uma pinga:
Um trevo de quatro folhas
Tenho debaixo da língua.

E nada de biografia 
Senão a da lua nova:
O que escreverem um dia
Os astros da minha cova.

 CORREIA, Natália, Antologia poética, Lisboa, D. Quixote, 2013, pp.163-165.

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