sexta-feira, 24 de maio de 2024

Um grão de areia

 

Praia da Cruz Quebrada 

Quem entende a areia?

Estende-me os braços, distende num sorriso

O breve chão aviso, que é canto de sereia: 

"- Estou por ti, contigo.

Retenho do teu corpo

quanto basta

porque o que alastra para lá da tua sombra,

a praia, o perifrástico mar

e o que arredonda o teu olhar (minúsculo globo cariciando o desmedido por sondar)

nenhuns passos o abastecem todo.

por mais que o afrontes

a epiderme do espaço não macularás.


Mas pela minúcia do olhar que eu te souber captar 

serás ditoso.

por isso esconde-te onde caibas

E estuda-me indulgente. 

Este grão, este projecto milimétrico de chão 

Sou eu em peso.

Em esforço. Omito

a hecatombe, a luta e os escombros

da turbada erosão.

Esqueço-me das delongas, mas a ti

não te esqueço.

Da concha à concha da tua mão 

foi uma insignificante fração no rebordo do tempo.

O mais que invento

Um ranger um queixume

entende os tal qual são: 

vícios da solidão, sufocações de ontem

Solipsismos, crispações

ciúme do teu cobiçar o frio dos horizontes."

Eu vejo-a e escuto. A respiração da areia.

Quando se suspende e oculta, esquiva e reticente,

Distingo do seu eco o húmido fermento

que abasta nestes versos.

e se então me ergo da jazente toalha que a mim me retivera

no côncavo onde me coube o corpo

e a poalha do seu ventre austero

sacudo como quem expulsa o ócio

e periférico já

regresso por perímetros deletérios

à rotação ensossa

dos dias, dos revérberos

das montras dos destroços 

e, por hipótese quimerica, descubro algures

minusculamente

entre mim e o chão 

um deserdado grão de areia

registo a discrição do recado

e lanço o à pressa do vento.

Sem remorso.


TORRADO, António, Das coisas interiores, Lisboa, Glaciar, 2022, p. 247-248.

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