Praia da Cruz Quebrada |
Quem entende a areia?
Estende-me os braços, distende num sorriso
O breve chão aviso, que é canto de sereia:
"- Estou por ti, contigo.
Retenho do teu corpo
quanto basta
porque o que alastra para lá da tua sombra,
a praia, o perifrástico mar
e o que arredonda o teu olhar (minúsculo globo cariciando o desmedido por sondar)
nenhuns passos o abastecem todo.
por mais que o afrontes
a epiderme do espaço não macularás.
Mas pela minúcia do olhar que eu te souber captar
serás ditoso.
por isso esconde-te onde caibas
E estuda-me indulgente.
Este grão, este projecto milimétrico de chão
Sou eu em peso.
Em esforço. Omito
a hecatombe, a luta e os escombros
da turbada erosão.
Esqueço-me das delongas, mas a ti
não te esqueço.
Da concha à concha da tua mão
foi uma insignificante fração no rebordo do tempo.
O mais que invento
Um ranger um queixume
entende os tal qual são:
vícios da solidão, sufocações de ontem
Solipsismos, crispações
ciúme do teu cobiçar o frio dos horizontes."
Eu vejo-a e escuto. A respiração da areia.
Quando se suspende e oculta, esquiva e reticente,
Distingo do seu eco o húmido fermento
que abasta nestes versos.
e se então me ergo da jazente toalha que a mim me retivera
no côncavo onde me coube o corpo
e a poalha do seu ventre austero
sacudo como quem expulsa o ócio
e periférico já
regresso por perímetros deletérios
à rotação ensossa
dos dias, dos revérberos
das montras dos destroços
e, por hipótese quimerica, descubro algures
minusculamente
entre mim e o chão
um deserdado grão de areia
registo a discrição do recado
e lanço o à pressa do vento.
Sem remorso.
TORRADO, António, Das coisas interiores, Lisboa, Glaciar, 2022, p. 247-248.
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