ORWELL, George, 1984, Alfragide, D. Quixote, 2019, p. 296.
segunda-feira, 31 de janeiro de 2022
Sê feliz!
Homem, sê feliz! E não penses excessivamente
Nas indecisões deste desenventurado mundo de mágoas!
Perante Deus sê humilde e para o teu amigo bondoso,
E aos teus vizinhos pede e empresta com prazer:
A sorte dele hoje pode ser a tua amanhã;
Sê de coração jovial perante todas as aventuras;
Pois como acontece, ao que dizem, muitas vezes com os sábios,
Sem alegria não há tesouro que valha.
SCHWARTZ, Delmore, Nos sonhos começam as responsabilidades, Lisboa, Guerra e Paz, 2020, p. 260.
Silêncio e pensamento
O silêncio tende a soterrar o pensamento
mas também dele
o pensamento vive
MENDONÇA, José Tolentino, Papoila e o monge, Assírio e Alvim, 2019, p 33.
A verdade é mais forte
Venho dizer-vos que não tenho medo
a verdade é mais forte que as algemas.
Venho dizer-vos que não há degredo
quando se traz a arma cheia de poemas.
Pode ser uma ilha ou uma prisão.
Em qualquer parte eu estou presente.
Tomo o navio da canção
e vou direito ao coração de toda a a gente.
ALEGRE, Manuel, Praça da Canção, Lisboa, 5.ª edição, D. Quixote, 2015, p. 33.
domingo, 30 de janeiro de 2022
Para ti sou mais uma
Passas por mim sem me veres,
Transformas-te em trevas.
Escondo-me na escuridão
Renovando a solidão!
Para ti sou mais uma
Ou pior, nenhuma...
Contava obter a tua graça
Esperança perdida,
Mágoa recalcada
Porque não passei de um ensaio de caça!
Foste a minha excepção à regra
O Peso das fronteiras
Aqui me tens. E o texto.
Partículas. Partes sensíveis, pequenas
vísceras onde se ocultam vermes;
uma poeira doce;
depois uma ferida.
Repara bem nas frases.
Na lenta fusão das letras sob o estômago.
Feriste-me. E as sílabas de um mar
há tanto, tanto tempo desejado,
vais ouvi-las mais tarde
quando discutes Marx, ofendes os amigos
ou passeias de mão dada com os poderes do tédio.
Insisto apenas para que me descubras.
Mais ou menos absorto. Virado de costas
ou simplesmente lendo
sem fome as páginas do tempo.
Nunca pensei muito.
Aliás, repara, quando os textos explodem
e se notam no ar as mil paciências
sobre a paciência;
quando a solidão se escama
como um peixe dúbio,
tudo se torna leve, final, tenso, coeso,
e tu podes ouvir, uivando,
um cão banhado em lágrimas.
Esse sou seu. Um cão dentro do túnel.
Já de patas desfeitas. Mais frio. Ao frio.
Roubando, entre os antigos, ossos
roendo, entre os modernos, mitos.
Os poetas começam onde acaba isto.
Este penso infectado que me pões nos olhos.
Um país termina. Logo nasce um outro.
E o território és tu,
população, governo.
Amor administrativo; viva pátria
dos cínicos.
Vamos: sacode as armas quietas
da mentira.
Alarga as fronteiras
com teu riso sinistro.
Eu, mar, ligadura dobrada
sobre o sol do amor,
ardo na terra. Vou e venho.
E, além do mais, sou isto.
CARVALHO, Armando Silva, O País das minhas vísceras, Língua morta, 2021, pp. 125-126.
sábado, 29 de janeiro de 2022
quinta-feira, 27 de janeiro de 2022
Que escolher, então? O peso ou a leveza?
Se o eterno retorno é o fardo mais pesado, então, sobre tal pano de fundo, as nossas vidas podem recortar-se em toda a sua esplêndida leveza.
Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza bela?
O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo. Mas, na poesia amorosa de todos os séculos, a mulher sempre desejou receber o fardo do corpo masculino. Portanto, o fardo mais pesado é também, ao mesmo tempo, a imagem do momento mais intenso da realização de uma vida. Quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e verdadeira é.
Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastara-se da terra, do ser terrestre, torna-o semi-real e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes.
Que escolher, então? O peso ou a leveza?
KUNDERA, Milan, A Insustentável leveza do ser, Alfragide, D. Quixote, 32.ª edição, 2015, p. 11.
quarta-feira, 26 de janeiro de 2022
O silêncio do papel branco é o meu lugar eterno
SCHWARTZ, Delmore, Nos sonhos começam as responsabilidades, Lisboa, Guerra e Paz, 2020, p. 99.
terça-feira, 25 de janeiro de 2022
No mar
No mar passa de
onda em onda repetido
O meu nome fantástico e secreto
Que só os anjos do vento reconhecem
Quando os encontro e perco de repente.
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, No tempo dividido, Assírio & Alvim, 5.ª edição, 2019, p. 34
Os melhores livros são aqueles que nos contam o que já sabemos
ORWELL, George, 1984, Alfragide, D. Quixote, 2019, p. 221.
Está tanto frio. Se fores capaz, cobre-me de beijos
Deita-te aqui - esta noite, dentro de mim,
está tanto frio. Se fores capaz, cobre-me de
beijos: talvez assim eu possa esquecer para
sempre quem me matou de amor, ou morrer
de uma vez sem me lembrar. Isso, abraça-me
também: onde os teus dedos tocarem há uma
ferida que o tempo não consegue transportar.
Mas fecho os olhos, se tu não te importares, e
finjo que essa dor é uma mentira. Claro, o que
quiseres está bem - tudo, ou qualquer coisa,
ou mesmo nada serve, desde que o frio fique
no laço das tuas mãos e não regresse ao corpo
que te deixo agora sepultar. Não sentes frio, tu,
dentro de mim? Nunca nevou de madrugada no
teu quarto? Que país é o teu? Que idade tens?
Não, prefiro não saber como te chamas.
(seria bom P, ou talvez não)
PEDREIRA, Maria do Rosário, Poesia reunida, Lisboa, Quetzal, 2012, p. 159.
segunda-feira, 24 de janeiro de 2022
Balanço
Se eu rezasse, pediria compaixão
para os que não amam, para os que não sabem
para onde olhar quando estão sós e lhes falta
um rosto amado na memória, para os que
olham para uma flor e só pensam no dia em que
irá morrer. Talvez o amor não seja a única
salvação dos que precisam de tudo, nem
a cura para os males de quem não sabe
o que é o sonho. Porém, sem ele, as suas mãos
serão ainda mais vazias, e as suas noites
não terão o horizonte de uma luz ao
amanhecer. Penso em todos eles, por
quem rezaria, se eu rezasse, e é o teu rosto
que eu vejo à minha frente, são as tuas mãos
que procuram as minhas, e é a tua existência,
só pelo facto de existires, que acende
na minha noite cada futura manhã. E rezo,
afinal, no fim de tudo, rezo para que a tua voz
não me falte, o teu corpo se vista com o perfume
do campo e por ti corra, sempre, o rio deste amor.
P
JÚDICE, Nuno, Regresso a um
cenário campestre, Lisboa, D. Quixote, 2020, p. 29.
Podemos viver juntos
Já vês, pois, que podemos viver juntos,
Nos mesmos aposentos confortáveis,
Comer dos mesmos bolos e presuntos,
E rir dos miseráveis.
Nós podemos, nós dois, por nossa sina,
Quando o sol é mais rúbido e escarlate,
Beber na mesma chávena da China
O nosso chocolate.
E podemos até, noites amadas!
Dormir juntos dum modo galhofeiro,
Com as nossas cabeças repousadas
No mesmo travesseiro.
Posso ser teu amigo até à morte,
Sumamente amigo! Mas por lei,
Ligar a minha sorte à tua sorte,
Eu nunca poderei!
Eu posso amar-te como o Dante amou,
Seguir-te sempre como a luz ao raio,
Mas ir, contigo, à igreja, isso não vou,
Lá nessa é que não caio!
VERDE, Cesário, Cânticos do Realismo e outros poemas – 32 cartas, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005, p 66.
Lutas contra os outros ou contra ti?
Outra lição que aprendi: não lutes contra aquele que não é contra ti. É melhor lutares contra ti mesmo, domar-te, exemplificar-te, preparares-te para quando estiveres frente ao teu verdadeiro inimigo.
SOUSA, Lúcio Sousa, O Diabo foi meu padeiro, Alfragide, D. Quixote, 2019, p. 270.
Palavras
O que por palavras nos está oculto
no silêncio crepita
em intimidade
MENDONÇA. José Tolentino, Papoila e o monge, Assírio e Alvim, 2019, p 20
domingo, 23 de janeiro de 2022
Fogo
era uma tristeza sorumbática.
acontecia-me
perdoar mais as falhas do meu lápis
que as minhas.
era uma solidão,
variação de poço:
fosse ao contrário,
olhei uma cadela lânguida
e boa parte da tristeza
se foi.
dei vinte e quatro passos
imaginários
sobre beijing
e boa parte da solidão
se foi.
era uma porta asssim
entreaberta.
se eu fosse realmente dono do poema
demitia-me da minha obrigação de pessoa
- não escolhia caminhos.
me seria mais pacato ser a porta.
ou o chão.
ONDJAKI, Materiais para confecção de um espanador de tristezas, Editorial Caminho, 2009, p 30.
sábado, 22 de janeiro de 2022
O seu esplendor
Évora
Esta é a hora do esplendor.
Abram todas as janelas brancas.
As árvores estão noivas das suas sombras
e vão começar a caminhar
ao som de marchas e de palmas.
O amor que ninguém inventou
na Terra une o que o Céu ignora.
Esta é a hora do esplendor.
Toda a dor tem o seu penso rápido
e atá-la, e nós vamos, vamos
pela senda das árvores, como elas
de braços levantados, na hora
do noivado que ficou à sua espera.
Tudo isto aconteceu no tempo
da Primavera da rapariga ainda
não amada.
JORGE, Lídia, O Livro das tréguas, Lisboa, D. Quixote, 2019, p. 36.
sexta-feira, 21 de janeiro de 2022
Adiada?
Desde que encontrara Josef em Paris, já não pensa senão nele. Rememora sem parar a sua breve aventura de outrora em Praga. (...)
Recorda que, na sala de espera do aeroporto, ele lhe disse num tom grave e estranho: "Sou um homem absolutamente livre". Teve a impressão de que a sua história de amor, começada vinte anos antes, fora apenas adiada para o momento em que fosse os dois livres.
KUNDERA, Milan, A Ignorância, Porto, Edições Asa, 2001, p. 85
quinta-feira, 20 de janeiro de 2022
Tudo te pareça igual
Tudo te pareça igual:
a noite e o dia, a alegria e a dor
o tempo e o que está para lá do tempo
MENDONÇA, José Tolentino, Papoila e o monge, Assírio e Alvim, 2019, p 64.
Heroísmos
Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.
Eu temo o largo mar, rebelde. Informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.
VERDE, Cesário, Cânticos do Realismo e outros poemas – 32 cartas, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005, p. 70.