sábado, 1 de janeiro de 2022

Sai de ti

 Não fujas do que sentes. Não te escondas

no que dizes. Não digas mentiras.

Sê a tua voz. Faz. Trabalha. Não te queixes.

Não sofras por medo de sofrer mais.

Não mendigues jamais o que mereces.

Por exemplo, o amor. Fá-lo e tê-lo-ás.

Funda no fogo firme da sua fogueira

o teu lar,o teu oficio. E agradece ao ar

que entre e sai de de ti. Sê a janela

do que vive. Olha com cuidado.

Há olhares que podem envenenar o mundo.

Não deixe que apodreça o que sentes

dentro de ti. Faz exame de consciência

de vez em quando mas nunca esqueças

que é possível que sejas inocente.

Abre o teu coração couraçado

à união do céu com o mar,

da luz com a sombra.

Do canto dos grilos com o das cigarras.

Pinta de azul a alma. Troca

o que foste pelo que não serás.

 

Limpa a tua casa. Diz o teu abismo.

Cozinha. Convida,. Canta. Dança. Abraça.

Tira o pó da tua voz. Rega as plantas.

As dos pés também, no mar, em marcha.

Não te detenhas. Diante de ti os teus passos,

as tuas pegadas do amanhã, esperam-te, chamam por ti.

Não olhes para trás. Não sejas a tua estátua

de sal. E sai de ti, do que pensas

de ti. Sai desse quarto

escuro onde escreves os poemas

que dizem o que tens de fazer em vez de o fazer.

Põe-te a andar. Faz. Trabalha. Não te queixes.

Vira a página. vê. Olha. Sê atento

e fica atento. Não te esqueças o que vives.

Não esqueças o que acabas de viver.

Não esqueças o que acaba. Acaba. Vai

em busca de uma voz nova, longínqua.

Não fujas do que sentes. Não permitas

que a vida se perca no vazio,

que a morte ao chegar encontre

já feito o seu trabalho. Olha o céu

como quem diz adeus,

como quem agradece.

 

PIQUERAS, Juan Vicente, Instruções para atravessar o deserto - poemas escolhidos, Porto, Assírio & Alvim, 2019, pp.105-107.

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