Foi de facto neste instante, na espera do fim do mundo, que se operou a conversão radical dos valores do cristianismo. A humanidade está ainda prostrada diante de um Deus terrífico, mágico e vingador que a domina e que a esmaga. Mas ela consegue forjar-se à imagem de um Deus feito homem, que mais se assemelha e que em breve ousará olhar de frente. Ela envolve-se no longo caminho libertador que primeiro desemboca na Catedral Gótica, na teologia de Tomás de Aquino, em Francisco de Assis, e que depois prossegue em direcção a todas as formas de humanismo, a todos os progressos científicos, políticos e sociais, para transportar enfim, se nisso reflectirmos, os valores actualmente dominantes da nossa cultura.
Pintura de Álvaro Pires de Évora, Museu Nacional de Arte Antiga 2019 |
Na história das atitudes mentais... que significa na verdade o Ano Mil da encarnação e da redenção? O começo de uma viragem maior, a passagem de uma religião ritual e litúrgica - a de Carlos Magno, a de Cluny ainda - para uma religião de acção e que se encarna, a dos peregrinos de Roma, de Santiago e do Santo Sepulcro, em breve a dos cruzados. No seio dos terrores e dos fantasmas, uma primeira percepção do que é a dignidade do Homem. Aqui, nesta noite, nesta indigência trágica e nesta selvajaria, começam, por séculos e séculos, as vitórias do pensamento da Europa.
DUBY, Georges, O Ano Mil, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 215.
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