sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Ano Mil

Foi de facto neste instante, na espera do fim do mundo, que se operou a conversão radical dos valores do cristianismo. A humanidade está ainda prostrada diante de um Deus terrífico, mágico e vingador que a domina e que a esmaga. Mas ela consegue forjar-se à imagem de um Deus feito homem, que mais se assemelha e que em breve ousará olhar de frente. Ela envolve-se no longo caminho libertador que primeiro desemboca na Catedral Gótica, na teologia de Tomás de Aquino, em Francisco de Assis, e que depois prossegue em direcção a todas as formas de humanismo, a todos os progressos científicos, políticos e sociais, para transportar enfim, se nisso reflectirmos, os valores actualmente dominantes da nossa cultura.

Pintura de Álvaro Pires de Évora, Museu Nacional de Arte Antiga
2019


Na história das atitudes mentais... que significa na verdade o Ano Mil da encarnação e da redenção? O começo de uma viragem maior, a passagem de uma religião ritual e litúrgica - a de Carlos Magno, a de Cluny ainda - para uma religião de acção e que se encarna, a dos peregrinos de Roma, de Santiago e do Santo Sepulcro, em breve a dos cruzados. No seio dos terrores e dos fantasmas, uma primeira percepção do que é a dignidade do Homem. Aqui, nesta noite, nesta indigência trágica e nesta selvajaria, começam, por séculos e séculos, as vitórias do pensamento da Europa.
 
DUBY, Georges, O Ano Mil, Lisboa,  Edições 70, 1992, p. 215.

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