segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022
Essa sombra
Tudo o que temos pertence a outros,
desconhecidos de nós, e ainda a outros,
e temo-lo como se o perdêssemos
ficando uma sombra, a nossa sombra.
Estamos longe de casa e essa sombra
é a única morada a que podemos acolher-nos.
PINA, Manuel António, Os Livros, Lisboa, Assírio e Alvim, 2003, p. 24.
O que é o silêncio?
O silêncio não está sob controle
ninguém consegue activá-lo
sem transitar por ele
O silêncio
não é o oposto
mas o avesso
MENDONÇA, José Tolentino, Papoila e o monge, Assírio e Alvim, 2019, pp. 41-42.
O amor está sempre no princípio de todas as coisas
SCHWARTZ, Delmore, Nos sonhos começam as responsabilidades, Lisboa, Guerra e Paz, 2020, p. 78
domingo, 27 de fevereiro de 2022
sábado, 26 de fevereiro de 2022
Quando?
Quando enterrares o teu segredo
nas profundezas do teu coração
o teu desejo emergirá mais depressa
RUMI, O Pequeno livro da vida - o jardim da alma, do coração e do espírito, Alma dos Livros, 2020, p.92
Não vejo o teu coração
Não vejo o teu coração, deixei de ver a lua.
E o céu desta cidade não me vence.
CARVALHO, Armando Silva, O País das minhas vísceras, Língua morta, 2021, p. 252.
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022
No amor...
No amor, pede loucura
desiste da razão, desiste da vida
vai em busca de aventuras perigosas
em desertos repletos de sangue e de fogo!
RUMI, O Pequeno livro da vida - o jardim da alma, do coração e do espírito, Alma dos Livros, 2020, p. 93.
Se me tivesses tocado...
Dei-te o meu corpo como quem estende
um mapa antes da viagem, para que nele
descobrisse ilhas e paraísos e aí pousasses
os dedos devagar, como fazem as aves
quando encontram o verão. Se me tivesses
tocado, ter-me-ia desmanchado nos teus braços
como uma escarpa pronta a desabar, ou
uma cidade do litoral a definhar nas ondas.
Mas, afinal, foste tu que desenhaste mapas
nas minhas mãos - tristes geografias,
labirintos de razões improváveis, tão curtas
linhas que a minha vida não teve tempo
senão para presentir-se. Por isso, guardo
dos teus gestos apenas conjecturas, sombras,
muros e regressos - nem sequer feridas
ou ruínas. E, ainda assim, sem eu saber porquê,
as ondas ameaçam o lago dos meus olhos.
PEDREIRA, Maria do Rosário, Poesia reunida, Lisboa, Quetzal, 2012, p.105.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022
Feliz
Feliz é o momento em que o coração diz:
_ Ainda não plantei o meu jardim.
E tu respondes: - Tudo o que plantares crescerá.
Feliz é o momento em que a separação
te saúda: - Boa noite.
Feliz é o momento em que o amanhecer
te cumprimenta: - Bom dia.
Feliz é o momento em que o amor
envolto na nuvem da graça divina
faz chover pérolas no deserto.
RUMI, O Pequeno livro da vida - o jardim da alma, do coração e do espírito, Alma dos Livros, 2020, p. 101.
O teu nome
Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções
No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida
foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar,a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama
e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.
P
PEDREIRA, Maria do Rosário, Poesia reunida, 2.ª edição, Lisboa, Quetzal, 2013, p.97.
Sou a respiração que segue os teus passos
Sou a respiração que segue os teus passos
no invisível passeio do amor, de um e outro lado
erguem-se canteiros de flores furtivas
como os teus olhos abertos na surpresa
de um instante. Então, acompanho
o movimento das tuas mãos no piano
do corpo, tocando a silenciosa música
que morre como a onda, e como a onda
renasce num gesto em que os cabelos
se soltam como ave inquieta
P
JÚDICE, Nuno, Regresso a um cenário campestre, Lisboa, D. Quixote, 2020, p 90.
Porque é de noite
Porque é de noite e estamos ambos sós,
leitura e escritura,
criador e criatura,
na mesma inumerável voz.
PINA, Manuel António, Os Livros, Lisboa, Assírio Alvim, 2003, p. 51
P Tu não me pertenceste
Tu não me pertenceste - e, se uma vez acreditei que
acontecias dentro do meu corpo, das outras vi-te abraçar a
solidão com tanto ardor que concluí ser a memória quem
te mantinha vivo. O meu coração, contudo, sempre
te pertenceu, e é por isso que agora me custa tanto
respirar longe do teu peito, E mesmo os poemas todos
que escrevi não me pertenceram, porque essa vida
que pulsava no papel levaste-a tu contigo na hora
em que te foste -e a que tenho agora é mais
branca e vazia do que a morte, não é vida nem nada
que eu queira alguma vez que me pertença.
PEDREIRA, Maria do Rosário, Poesia reunida, Lisboa, Quetzal, 2012, p.139.
Tejo que levas as águas
Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar
Lava-a de crimes espantosos
De roubos fomes terror
Lava a cidade de quantos
Do ódio fingem amor
Lava bancos e empresas
Dos comedores de dinheiro
Que dos salários de tristeza
Arrecadam lucro inteiro
Lava palácios vivendas
Casebres bairros da lata
Leva negócios e rendas
Que a uns farta a outros mata
Leva nas águas as grades
De aço e silêncio forjadas
Deixa soltar-se a verdade
Das bocas amordaçadas.
FONSECA, Manuel, Obra poética, Alfragide, Caminho 11.ª ed., 2011, p. 187.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022
Desaprende tudo e abraça a loucura!
RUMI, O Pequeno livro da vida - o jardim da alma, do coração e do espírito, Alma dos Livros, 2020, p. 43.
Ardes-me
Ardes-me no peito onde a custo
o meu amor perpassa, e vai até
às loucuras do corpo
e às agruras da alma.
Ardes-me no minuto, no segundo,
na hora amaciada por olhos entrevistos,
ardes-me no sangue obstruído
e na certeza muda que me diz
que o coração existe
TANEM, Pedro, Rua de nenhures, Alfragide Publicações D. Quixote, 2013, p. 20.
terça-feira, 22 de fevereiro de 2022
O interesse do Partido
O Partido busca o poder em nome apenas do seu próprio interesse. O bem dos outros não nos interesssa; só nos interessa o poder. Não é a riqueza nem o luxo nem a longevidade nem a felicidade: é só o poder, o poder puro.
ORWELL, George, 1984, Alfragide, D. Quixote, 2019, p. 290.
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022
Um mar é um deserto molhado
Praia de Alvor
O silêncio é uma esteira onde nos podemos deitar.
Esteira de poeira cósmica, se eu olhar de novo o céu escuro. Esse azul do céu lembra o chão do mar. Um mar, afinal, é só um deserto molhado, em vez de homens e camelo, tem peixes e canoas a passear nele. O deserto é parecido com o mar, o mar é parecido com o Universo cheio de estrelas pirilampas.
O deserto podia caber no peito do mar, o mar podia caber no corpo do Universo, o Universo só pode caber no coração das pessoas.
ONDJAKI, Uma escuridão bonita, Caminho, 2004, p. 18.
domingo, 20 de fevereiro de 2022
Adeus
Adeus. Bem gostaria de nunca vos ter visto- Ah, sinto vivamente a falsidade deste sentimento e vejo, neste momento em que vos escrevo, como prefiro ser infeliz amando-vos a nunca vos ter visto. Aceito pois sem protestar o meu desditoso destino, já que não quiseste torná-lo melhor.
Cartas portuguesas de Mariana Alcoforado, Lisboa,Terreiro do Paço Editores, 2013, pp 54-55.
sábado, 19 de fevereiro de 2022
Não confies em nada a não ser no teu coração
RUMI, O Pequeno livro da vida - o jardim da alma, do coração e do espírito, Alma dos Livros, 2020, p. 14
A mulher
primeiro vou beijar a mulher, depois a pedra.
se sobrarem beijos, vou atirá-los a favor do vento.
ONDJAKI, Materiais para confecção de um espanador de tristezas, Editorial Caminho, 2009, p 51
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022
Se partires, não me abraces
Praia da Rocha |
uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.
PEDREIRA, Maria do Rosário, Poesia reunida, 2.ª edição, Lisboa, Quetzal, 2013, p.101.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022
O que é a coquetterie?
Pode talvez dizer-se que é um comportamento que deve sugerir que a aproximação sexual é possível, sem que essa eventualidade possa ter sido como certa. Ou, por outras palavras, a coquetterie é uma promessa de coito, mas uma promessa sem garantias.
(...)
Tomas não se cansa de insistir que , entre o amor e o acto de amor, há todo um Universo.
(...)
Se, para outras mulheres, a coquetterie é uma segunda natureza, uma rotina insignificante, para Tereza, daqui em diante ela será o campo de uma importante investigação que deve fazer-lhe descobrir aquilo de que é capaz. Mas por ser assim tão importante, assim tão grave, a sua coquetterie perdeu toda a leveza, é forçada expressamente convocada, excessiva. Rompeu-se o equilíbrio entre a promessa e a falta de garantias (na qual reside precisamente o autêntico virtuosismo da coquetterie!)
KUNDERA, Milan, A Insustentável leveza do ser, Alfragide, D. Quixote, 32.ª edição, 2015, pp. 178-179.
Quando?
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar.
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.
Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.
Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, Obra do mar, Caminho, 5.ª edição, 2005, p. 77.
Desilusão
Cada um de nós foi desiludido e a maior parte de nós vai continuar a sofrer desilusões. Seria uma parvoíce tentar dizer que a desilusão não é dolorosa, ou que é boa para nós, ou que é necessária.
SCHWARTZ, Delmore, Nos sonhos começam as responsabilidades, Lisboa, Guerra e Paz, 2020, p. 131.
Ensaio
Eu estava a ser apenas uma parte de mim e tu
estavas a ser apenas uma parte de ti. As luzes
eram prováveis. Eu, inteiro, precisava tanto de
ouvir o fascínio que disseste, da maneira exacta
como o disseste, mas tu estavas a ser apenas
uma parte de ti, porque se estivesses única
e completa, com as raízes e as cicatrizes,
com os postais que escreveste mentalmente
e que nunca enviaste, não falarias assim.
Além disso, eu não ficaria calado só a ouvir-te.
Se tu estivesses a ser tu, haveria um substantivo
mal pronunciado, mal compreeendido, e essa única
e completa palavra podia ser tua ou podia
ser minha se eu estivesse a ser eu. Esse erro
seria o primeiro degrau. Depois, saberíamos
como chegar às palavras antigas que magoam.
E, apesar de já ter escrito eu precisava tanto de
ouvir o fascínio que disseste, não seria capaz
de admitir que era esse simples que queria,
e tu também não, embora fosse esse mesmo
simples que quisesses. E ambos teríamos
a certeza omnipotente de nos conhecermos.
Felizmente, nada disso foi necessário porque
eu estava ser apenas uma parte de mim,
tu estava a ser apenas uma parte de ti
e as luzes eram prováveis, como reticências.
PEIXOTO, José Luís, Gaveta de papéis, 2.ª edição, Quetzal, 2011, p.p. 67-68
As palavras de amor
Esqueçamos as palavras, as palavras:
As ternas, caprichosas, violentas,
as suaves de mel, as obscenas,
as de febre, as famintas e sedentas.
Deixemos que o silêncio dê sentido
ao pulsar do meu sangue no teu ventre:
Que palavra ou discurso poderia
Dizer amar na língua da semente?
SARAMAGO, José, Provavelmente alegria, Lisboa, Porto Editora, 2014, p. 21.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022
Novo retrato
(…)
Eu amo esta mulher que vem ao meu encontro
nas manhãs mais puras, nas manhãs em que o vento
atravessa os bosques, nas manhãs em que uma chuva
lenta se converte em música de maré quando
a sua boca me humedece com o seu desejo. E eu viajo
na praia da sua pele, provando o sal o suor
das suas axilas, e ouvindo a sua respiração
descer sobre mim para me dar o brando furor
de todos os sentidos, e e me abrir o caminho
das suas coxas até ao centro do mundo.
Esta, a mulher que eu desejo, tem nas suas mãos
a arte da tocadora de uma harpa de asas, e eu voo
com ela num vagar do lume que o seu corpo acende.
JÚDICE, Nuno, Novo Retrato, Regresso a um cenário campestre, Lisboa, D. Quixote, 2020, pp. 66-67.