Eu estava a ser apenas uma parte de mim e tu
estavas a ser apenas uma parte de ti. As luzes
eram prováveis. Eu, inteiro, precisava tanto de
ouvir o fascínio que disseste, da maneira exacta
como o disseste, mas tu estavas a ser apenas
uma parte de ti, porque se estivesses única
e completa, com as raízes e as cicatrizes,
com os postais que escreveste mentalmente
e que nunca enviaste, não falarias assim.
Além disso, eu não ficaria calado só a ouvir-te.
Se tu estivesses a ser tu, haveria um substantivo
mal pronunciado, mal compreeendido, e essa única
e completa palavra podia ser tua ou podia
ser minha se eu estivesse a ser eu. Esse erro
seria o primeiro degrau. Depois, saberíamos
como chegar às palavras antigas que magoam.
E, apesar de já ter escrito eu precisava tanto de
ouvir o fascínio que disseste, não seria capaz
de admitir que era esse simples que queria,
e tu também não, embora fosse esse mesmo
simples que quisesses. E ambos teríamos
a certeza omnipotente de nos conhecermos.
Felizmente, nada disso foi necessário porque
eu estava ser apenas uma parte de mim,
tu estava a ser apenas uma parte de ti
e as luzes eram prováveis, como reticências.
PEIXOTO, José Luís, Gaveta de papéis, 2.ª edição, Quetzal, 2011, p.p. 67-68
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