terça-feira, 29 de março de 2022

GERMANO SANTOS VIDIGAL

Avenida eborense

Escarro e Carrilho levantam Germano Santos Vidigal por baixo dos braços, erguem-no em peso, não queria que estivessem a incomodar-se, e vão sentá-lo numa cadeira. Escarro tem ainda o vergalho na mão, passado ao pulso pelo fiador, já lhe passou a fúria de bater assim, mas dá um berro, Cabrão, e cospe na cara do homem derrubado na cadeira como um casaco que foi despido e  está vazio. Abre os olhos Germano  Santos Vidigal e, por incrível que pareça, o que ele vê é o carreiro das formigas, talvez por ser mais denso no sítio que os olhos no acaso de abrir-se fitam, não admira, o sangue humano é um manjar para as formigas, nem elas, pensando bem, vivem doutra coisa, e ali caíram juntas três gotas de sangue, padre Agamades, e três gotas de sangue fazem uma poça, um lago, um mar oceano. Abriu os olhos, se é isto abrir, umas fendas estreitíssimas por onde a luz mal pode penetrar, e a que entra é de mais, tão viva a dor nas pupilas, sentida apenas por ser dor nova, faca que vem espetar-se onde cem outras estão espetadas e na carne se revolvem...


SARAMAGO, José, Levantado do chão, Círculo de Leitores, 1999, p. 179.                                                         

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