quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A flor na Selva

Estendeu o braço e apanhou a flor. Quanto valeria aquilo em Portugal! E a mata estava cheiinha delas! Eram orquídeas preciosas, de recorte singular e surpreendentes cores, cactáleas de pétalas tersas de lírio, que tinham algo de sexo virgem e fascinavam como uma ilusão. Parasitárias, as raízes que lhe davam vida prendiam-se, como tentáculos, a caules de seiva rica e nunca mais desfaziam o abraço. E o drama não era único. Metade da selva vivia da outra metade, como se a terra não bastasse para o império vegetal e fosse necessário sugar as árvores que chegaram primeiro. Não havia ramagem que não alimentasse, com o próprio sangue, o seu parasita – as grinaldas estranhas que a envolviam. O apuizeiro, de vasta bibliografia, levava mais longe o despotismo: a princípio, era semente anónima caída sobre uma forquilha; depois, raiz bamboleante e humilde, procurando a medo o chão distante; e por fim devorava toda a árvore, até ficar sozinho. Na sua mudez, aquele mundo vegetal tinha cruéis egoísmos, ferocidades insuspeitadas e tiranias inconfessáveis. Viver! Viver, à sua custa ou à custa de outrem, era a ânsia de todo o rami, de toda a folha, por mais despersonalizados que se apresentassem aos olhos de quem os via.



Com a cactálea na mão, Alberto contemplou, um instante, a sua blusa de riscado. Ao tinha botoeira; seria acto grotesco prendê-la ali. E, contudo, se a houvesse adquirido outrora, numa florista do Chiado, subiria a rua envaidecidamente, alegre por ostentar a flor exótica. A recordação da cidade longínqua, panóplia dos troféus da sua juventude, de novo o entristeceu. (…) Atirou-a finalmente à água. E ela quedou-se a flutuar, as pétalas abertas, a haste mergulhada – uma estrela acendia na superfície negra.

CASTRO, Ferreira de, A Selva, Lisboa, 38.ª edição, Guimarães Editores Lda., 1991, p.p.130-131.

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