quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Por vezes

Por vezes a luta entre a pequena curva

e o automóvel

entre as frases incertas e o gesto

natural de quem desvia

a morte

para outra estrada.

Nada me perde, tudo se transforma.

Entre falas vencidas, matéria após matéria;

és tu quem guia a boca, alguns

fios do silêncio nos reus cabelos de ouro

e de miséria


CARVALHO, Armando Silva, O País das minhas vísceras, Língua morta, 2021, p. 235.

Todos têm medo da morte

Todos gastam muito tempo à frente do espelho. Todos têm medo da morte. Todos podem ser magoados pelo riso porque o ego é uma ferida. O maior terror, a maior abominação, é a morte da vontade que deseja e escolhe. Todos seguem os seus caminhos idênticos e separados conduzidos pela ânsia no coração obsceno e obcecado.


 SCHWARTZ, Delmore, Nos sonhos começam as responsabilidades, Lisboa, Guerra e Paz, 2020, p. 168.

As cruzes ao longo das estradas

São como sombras tristes, são como o outono.

Pode olhar-se para dentro das cruzes ao longo

das estradas, são como poços, são como filhos


perdidos. As cruzes ao longo das estradas estão cobertas por flores de plástico, secas, desbotadas

pela luz que, nos campos, brinca com os rostos


e com a memória. existem linhas traçadas entre

o céu e as cruzes ao longo das estradas, são elas

que seguram uma parte do mundo, só os pais são

capazes de as ver.


Agora, enquanto falamos de papagaios de papel,

elas estão lá, onde sempre estiveram.


As cruzes ao longo das estradas são diferentes

de nós porque se nós somos o vento e passamos,

as cruzes ao longo das estradas também são o vento,

mas há muito tempo que conseguiram chegar lá.


PEIXOTO, José Luís, Gaveta de papéis, 2.ª edição, Quetzal, 2011, p. 35.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Raízes

Dominarei as raízes porque sei que as tenho,

e tê-las me consome em ramos.


Não me importa ser árvore,

se é no horizonte que eu estou.


SENA, Jorge de , Coroa da Terra, Assírio e Alvim, 2021, p. 39

domingo, 20 de novembro de 2022

sábado, 19 de novembro de 2022

Fonte das Portas de Moura










Évora

 

Noite de sonho voada

 Noite de sonho voada

cingida por músculos de aço

profunda distância rouca

da palavra estrangulada

pela boca amordaçada

noutra boca

ondas do ondear revolto

das ondas do corpo dela

tão dominado e tão solto

tão vencedor, tão vencido

e tão rebelde ao breve espaço

consentido

nesta angústia renovada

de encerrar

fechar

esmagar

o reluzir de uma estrela

num abraço

e a ternura deslumbrada

a doce funda alegria

noite de sonhos voada

que pelos sei olhos sorria

ao romper de madrugada:

- Ó meu amor, já é dia!...


FONSECA, Manuel, Obra poética, Alfragide, Caminho 11.ª ed., 2011, p.176.

amor, como de um vento amordaçado na camisa

Quero falar-te deste amor, como de um vento

amordaçado na camisa; uma febre de verão

que o mercúrio não acha; um telhado esmagado

pela ideia da chuva. Quero dizer-te


que sobre ele pairaram sempre brumas e nevoeiros

e profecias de temporais maiores, como os que levam

para longe os corpos dos navios. Não há notícias


deste amor; apenas uma intriga, um recado sonâmbulo,

um temor que desmaia as pergas do vestido e um sortilégio

urdido nas paisagens suspenas de um mapa que aperto

na mão sem desdobrar. E há memórias


deste amor? A voz sem as palavras, um livro lido

às escuras, um bilhete cifrado deixado num hotel,

um velho calendário cheio de desencontros? Não,


não há memória deste amor.


PEDREIRA, Maria do Rosário, Poesia reunida, Lisboa, Quetzal, 2012, p. 90.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Beleza de Monchique




 

Quarto crescente





Évora


 

Entre as pedras

Porque já não esperas regressar

entre as pedras acabarás por adormecer

na boca os pé claro regato.


  ANDRADE, Eugénio de, Véspera da água, Porto, Assírio e Alvim, 2014, p. 48.

Tentativa de compreensão dos homens na literatura

Os homens que têm a mania das mulheres dividem-se facilmente em duas categorias. Uns procuram em todas as mulheres a ideia de que eles próprios têm da mulher tal como ela lhes aparece em sonhos, o que é algo de subjectivo e sempre igual. Aos outros, move-os o desejo de se apoderarem da infinita diversidade do mundo feminino objectivo.

A obsessão dos primeiros é uma obsessão lírica; o que procuram nas mulheres não é senão eles próprios, não é senão o seu próprio ideal, mas, ao fim e ao cabo, apanham sempre uma grande desilusão, porque. como sabemos, o ideal é precisamente o que nunca se encontra. Como a desilusão que os fez andar de mulher em mulher dá, ao mesmo tempo, uma espécie de desculpa melodramática à sua inconstância, não poucos corações sensíveis acham comovente a sua perseverante poligamia.

A outra obsessão é uma obsessão épica e as mulheres não vêem nela nada de comovente: como o homem não projecta nas mulheres um ideal subjectivo, tudo tem interesse e nada pode desiludi-lo. E esta impossibilidade de desilusão encerra em si algo de escandalosos. Aos olhos do mundo, a obsessão do femeeiro épico não tem remissão (porque não é resgatada pela desilusão)

Como o femeeiro lírico gosta sempre do mesmo tipo de mulheres, quase nem se repara quando tem uma amante nova; os amigos causam-lhe sérios embaraços porque nunca vêem que a sua companheira já não é a mesma e tratam as suas amantes sempre pelo mesmo nome.

Na sua caça ao conhecimento, os femeeiros épicos (e é evidentemente a esta categoria que Tomas pertence) afastam-se cada vez mais da beleza feminina convencional (de que depressa se cansam) e acabam infalivelmente como colecionadores de curiosidades. Têm consciência de tal coisa, envergonham-se um pouco dela e, para não incomodar os amigos, nunca aparecem em público com as amantes.


KUNDERA, Milan, A Insustentável leveza do ser, Alfragide, D. Quixote, 32.ª edição, 2015, p.252

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Pô do sol



Évora
 

A miséria do mundo não existe

A miséria do mundo não existe,

nem o mundo existe:

andamos nós em bando sobre a terra.

Que o mundo é só a ignorância dos homens,

e a maior miséria dos homens só as palavras que os vivem. 


 SENA, Jorge de , Coroa da Terra, Assírio e Alvim, 2021, p. 48

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

A brilhar

 Recuperei o brilho no olhar!

Tu fazes milagres

minha musa barbuda,

fazes me viver

e num instante

matas as minhas inseguranças;

O teu coração bate,

recupero as forças

depois da magia.

Em ti tudo me encanta

e a todos tu espantas

ao me dizeres para pensar em mim!

Não me desapareças,

isso enervou-me...

mas depressa passou

num admirável mundo novo

onde surpreendentemente descubro a ti 

e a mim!


XPTO

Gente pobre

 Gente pobre é caprichosa - assim está feita a natureza. Já antes o sentia. O homem pobre é exigente, olha para o mundo de Deus de outra maneira, olha de soslaio para cada transeunte, passa ao seu redor um olhar confuso, a cada palavra que ouve fica alerta: não estarão a falar dele, a contar porque é tão feio? O  que é que, exatamente, ele sente? Como é ele deste ponto de vista, daquele ponto de vista? E toda agente sabe que o homem pobre é pior do que um trapo que não merece respeito da parte de ninguém, escrevam o que escreverem... Seja o que for que esses escrevinhadores escreviam o pobre continua sempre na mesma. E porquê na mesma? Porque, na opinião deles, o homem pobre deve ter tudo virado do avesso, não pode esconder nada no segredo da alma, não pode ter, nem pensar! qualquer ambição.


DOSTOIÉVSKI, Fiódor, Gente pobre, Lisboa, 3.ª edição, Editorial Presença, 2021, p. 85.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Esta noite vivi

Esta noite vivi

um milhão de anos

e um milhão de vidas


Já aqui estive antes

sabes, amor?


Ora olha-me nos olhos...


Sete anos habitei o templo perdido do amor

Sete anos um deserto de palavras

Sete anos o exílio a que a escrita me condenou


Mas esta noite vivi

um milhão de anos

e no meu corpo pus um milhão de vidas

com a maquinaria da noite

rodando as suas enormes rodas dentadas

no interior da humanidade

A noite nas veias do homem é solitário

que sabe que para chegarmos a deus

precisamos de velocidade

e novos ângulos de visão


A noite nas veias do homem solitário que sabe

mas não diz

Está sempre à espera que lhe batam à porta

pois esse é o drama de viver

com tanta gente à volta


Esta noite vivi

um milhão de anos

e no meu corpo pus um milhão de vidas

com a noite nas veias

e no meu respirar

o bafo quente das estrelas.


PIMENTA, José António, Deixa entrar a noite na palavra, Coimbra, MinervaCoimbra, 2019, p. 34-35.

sábado, 12 de novembro de 2022

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Nublado


 Évora 

E assim seguimos, os barcos contra a corrente, incessantemente puxados de volta ao passado.

Gatsby acreditava na luz verde, no futuro orgástico que, ano após ano, se esbate à nossa frente. Em dada altura iludiu-nos, mas não faz mal: amanhã correremos mais depressa, estenderemos os braços mais além.... E, numa bela manhã....

E assim seguimos,  os barcos contra a corrente, incessantemente puxados de volta ao passado.

FITZGERALD, F.Scott, O Grande Gatsby, Porto, Porto Editora, 2020, p. 196.

As balas

Que as balas só dão sangue derramado

Só roubo e fome e sangue derramado

Só ruína e peste e sangue derramado

Só crime  morte e sangue derramado.


 FONSECA, Manuel, Obra poética, Alfragide, Caminho 11.ª ed., 2011, p. 199.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Viajar dá mundo

CADILHE, Gonçalo, Por este rio acima - No primeiro trekking da História de Portugal, Lisboa, Clube do Autor, 2020, p. 41.

sábado, 5 de novembro de 2022

Candeeiro




 Praça do Giraldo, Évora

Arraiolos












Branco e Cinza


 ÉVORA

Dormindo no museu

Centro Museológico da Igreja de São Francisco de Évora
 

Desta cadeira

Nesta cadeira me sento,

e nela que me apresento,

mas menos do que me ausento.

tento, lamento, avelhento,

aqui me invento e rebento;

passo gordura de unguento

e alimento o alento

da vida de sono e pão.


Desta cadeira prossigo

para um outro nó pascigo,

já sem perigo nem abrigo,

amigo como inimigo,

com meu já perdido umbigo

de só nascer por castigo:

ali de vez eu te irrigo,

cintilante coração.


TAMEN, Pedro, Memória Indescritível, Lisboa, Gótica, 2000, p. 14.

Tão estranha é a tristeza como a felicidade

Sentia a mesma estranha felicidade, a mesma estranha tristeza. A tristeza queria dizer: estamos na última paragem. A felicidade queria dizer: estamos os dois juntos. A tristeza era a forma, e a felicidade era o conteúdo. A felicidade preenchia o espaço da tristeza.

 

KUNDERA, Milan, A Insustentável leveza do ser, Alfragide, D. Quixote, 32.ª edição, 2015, p.391.

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Gato de rua


 Évora 

Em lista de espera

Em lista de espera,

a gata assanhada

roça as pernas

para controlar a máquina...


As unhas crescem

para atascar nas tuas costas!!!

Não dizes nada

é porque o furacão ataca outras costas...


Expectativa chumbada?

Oficina fechada para balanço?

Ou ignorada

até que me canso?????


XPTO

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Mata-se sempre aquilo que se ama

Mata-se sempre

aquilo que se ama,

diria um dia alguém,

no culminar do verso

e da paixão


AMARAL, Ana Luísa, Ágora, Porto Assírio e Alvim. 2019, p. 61.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Os mortos de Hecate

 Ao nosso lado os mortos em surdina

Bebem a exalação da nossa vida.

São a sombra seguindo os nossos gestos,

Sinto-os passar quando leves vêm

Alta noite buscar os nossos restos.

 

Passam nos quartos onde nos deixamos,

Envolvem-se nos gestos que traçamos,

Repetem as palavras que disssemos,

E debruçados sobre o nosso sono

Bebem como um leite o nosso sonho.

 

Intangívei, sem peso e sem contorno

Ressurgem no sabor vivo do sangue.

Sorriem às imagens que vivemos

E choram por nós quando não as vemos,

Porque já sabem para aonde vamos.


ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, Obra do mar, Caminho, 5.ª edição, 2005, p. 80

 

História Universal

Um homem nasce chora cresce ri

sofre e faz sofrer caminha canta

tem sede fome frio medo pressa

perde-se transborda arde sorri.

 

Um homem sozinho no meio da noite

assobia para amansar os monstros que o habitam.

 

Abraça empurra mata beija morre

cansa-se de si mesmo apaixona-se

dá-se à vida sabe que se acaba

que escorre o que é por entre os dedos.

 

Um homem olha o céu as nuvens e diz-se

em silêncio que breve

que bela e fugidia é, foi, a vida. 

 

PIQUERAS, Juan Vicente, Instruções para atravessar o deserto - poemas escolhidos, Porto, Assírio & Alvim, 2019, p 55.

Gavetões




 Cemitério de Portimão

Os mortos

 


Eu sei, é preciso esquecer,

desenterrar os nossos mortos e voltar a enterrá-los,

os nossos mortos anseiam por morrer

e só a nossa dor pode matá.los.


 PINA, Manuel António, Os Livros, Lisboa, Assírio  Alvim, 2003, p. 16.

Panteões do mundo...

... esses grotescos museus do orgulho. O único capaz de nos tocar.


 KUNDERA, Milan, A Ignorância, Porto, Edições Asa, 2001, p.98.