segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Confissão do fugitivo

Só sou feliz partindo.

 

Não entre quatro paredes, à mercê das espadas,

mas entre aqui e ali, uma e outra casa,

ambas de preferência alheias.

 

Já não posso, nem quero, estar quieto.

Nem agora nem depois. Nem aqui nem ali.

Em todo o caso aí, onde tu estás,

sejas tu                                                                                                                                                                                                            quem fores, põe o teu nome

nos meus lábios sedentos, insaciáveis.

 

Eu não sou eu nem posso ter casa.

Não digo já porque foi sempre assim,

nunca a tive, sempre fui estrangeiro

dentro e fora de mim. Sou o que não sou:

O mendigo que dorme debaixo da ponte

que une as minhas duas margens e que cruzo

dia e noite sem poder deter-me.

 

Escrevo porque procuro, porque espero.

Mas já não sei o quê, perdeu-se na memória.

Espero que escrevendo

acabe por lembrar-me. Insisto  na intempérie.

Sobrevivo entre parêntesis

no espaço vivo e no tempo morto

da espera de quê, entre dois aquis.

 

Nunca em mas entre. Sai de mim,

sejas que fores, deixa-me em paz

ou acaba já comigo e com o mel

amargo de estar só a falar só.

 

Decidi que a minha pátria seja

não decidir, não estar em nenhum sítio

mas de passagem, pontes, naves, comboios,

onde eu seja só o passageiro

que sei que sou, sentindo

que me inquieta a paz,

que a quietude me assusta,

que a segurança não me interessa,

que só sou feliz quando me sei fugaz.

 

PIQUERAS, Juan Vicente, Instruções para atravessar o deserto - poemas escolhidos, Porto, Assírio & Alvim, 2019, pp. 11-13.

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