quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

A província gosta de visitar Lisboa e Lisboa gosta de visitar a província


Seja como for, a nação não morre de amores por Lisboa, e sabe-se que Lisboa lhe paga na mesma moeda. É uma mútua hostilidade latente, que os anos não suavizam. O grito doloroso e revoltado que ainda hoje ecoa pelas serras da beira - "O país não é o Terreiro do Paço!" - exprime uma parte desse desencontro; a ironia e o superior desdém com que o lisboeta fala da província, é outra imagem dele. A centralização que o progresso tem acentuado, fazendo convergir todo o esforço do país para a sede do poder, aviva feridas mal cicatrizadas e abre outras de maior purulência ainda; um convívio mais íntimo com a nata do mundo, uma situação de privilégio em relação à cultura e aos gostos, tornam penosos o contacto com maneiras terrosas e analfabetas.

Apesar desse divórcio por incompatibilidade de feitios e de interesses, a província gosta de visitar Lisboa e Lisboa gosta de visitar a província. Embora regressem cada qual a sua casa aborrecidas e renitentes, encontram-se momentaneamente na beleza duma e na pureza da outra. Ao cabo e ao resto, sentem ambas que fazem parte do mesmo todo, como membros solidários dum só corpo.


 TORGA, Miguel, Portugal, Alfragide, 10.ª edição, Leya,2015, pp. 79-80.

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