quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Ensaio

Eu estava a ser apenas uma parte de mim e tu

estavas a ser apenas uma parte de ti. As luzes


eram prováveis. Eu, inteiro, precisava tanto de

ouvir o fascínio que disseste, da maneira exacta



como o disseste, mas tu estavas a ser apenas

uma parte de ti, porque se estivesses única


e completa, com as raízes e as cicatrizes,

com os postais que escreveste mentalmente


e que nunca enviaste, não falarias assim.

Além disso, eu não ficaria calado só a ouvir-te.


Se tu estivesses a ser tu, haveria um substantivo

mal pronunciado, mal compreeendido, e essa única


e completa palavra podia ser tua ou podia

ser minha se eu estivesse a ser eu. Esse erro


seria o primeiro degrau. Depois, saberíamos

como chegar às palavras antigas que magoam.


E, apesar de já ter escrito eu precisava tanto de 

ouvir o fascínio que disseste, não seria capaz


de admitir que era esse simples que queria,

e tu também não, embora fosse esse mesmo


simples que quisesses. E ambos teríamos

a certeza omnipotente de nos conhecermos.


Felizmente, nada disso foi necessário porque

eu estava  ser apenas uma parte de mim,


tu estava a ser apenas uma parte de ti

e as luzes eram prováveis, como reticências.



 PEIXOTO, José Luís, Gaveta de papéis, 2.ª edição, Quetzal, 2011, p.p. 67-68

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