sexta-feira, 30 de maio de 2025

O sangue, a luz: um coração

Repetidamente escrevo a letras de água a

Imprecisa memória de estar e de ter estado 


Digo palavras, digo lugares de domínio e servidão:

estreitíssimo fio de frágeis elos cuja sombra indistinta 

me une - e me separa- à indelével página do mundo


sou o que fica escrito no caminho

as palavras que deixo espalhadas pelo tempo

abandonadas ao pó  do que de mim resta 

subtil ruína envolta em névoa


O teu nome

um caudaloso rio fluindo eternamente por entre os dias

até mim


Envolto na teia de húmidos brilhos que é o teu amor

escrevo e reescrevo a esbatidas sílabas o que foi já:

meras gotículas de que é feita a noite adormecida

cinza e lumes de palavras perdidas ardendo para sempre

o teu corpo

Ainda um barco no mar de prata que é o

Sol reflectido nas águas:

Penumbra e luz

(...)

Que líquida geografia é o teu amor


podias ser se quisesses o meu nome ainda

o espaço em que lento me movo lento e repartido 

entre pedaços de lume transparente 


mas sejas no fim o que nós formos, ruína ou água 

partilharemos sempre palavras de fogo nas mãos a arder

dentro do frio diamante acesso que é o coração a sangrar luz.


RIBEIRO, Rui Casal, Escrever a água, Lisboa, Edições Colibri, 2018, pp. 61-62.

Sem comentários: