quarta-feira, 10 de abril de 2019

Lisboa de Manuel Alegre


Lisboa é esta praça com árvores e com pássaros
Merlos piscos toutinegras rouxinóis
E barcos inconcretos nos telhados onde
O azul do céu é já um mar do avesso
Um reflexo do Tejo ou talvez um
Pressentimento de cadete ocaso Cabo Raso
Um navegar só verbo em navio nenhum.
Lisboa é esta janela de onde vejo
Tudo o que se não vê que é o que há mais
Em Lisboa onde se vê mesmo sem ver o Tejo
E onde cada varanda é sempre um cais.
Lisboa é esta praça e esta janela
Minha nau capitânia sobre o insondável
Dentro de casa eu vou de caravela
Bartolomeu Dias neste mar inavegável
Não há Índia perdida que não possa ser achada
Lisboa é esta praça e esta viagem
Esta partida mesmo se parada
Este embarcar no azul até chegar àquela margem
Em cuja linha só o abstracto pensamento passa
A margem única e absoluta não mais que pura imagem
Sem precisar sequer sair da Praça
João do Rio número onze quarto direito
Onde eu Ulisses vou à proa
Além de qualquer cabo e qualquer estrito
Em Lisboa por dentro de Lisboa.


ALEGRE, Manuel, Praça João do Rio ou segundo poema do português errante, Livro de português errante, Lisboa,  Publicações D. Quixote, 2001, pp. 39-40.

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