Basta pegar num jornal, basta ver um noticiário de
televisão, basta ouvir a rádio, basta entrar numa conversa de amigos,
para se ver que Portugal é um torvelinho de misérias e não sai da cepa
torta. (...) Já não é uma questão de fado em Alfama, nem de negro
fadário, nem de simples má vida... É uma questão de sanidade pública.
Regressou-se aos tempos do caciquismo, do nepotismo, do oportunismo, do
corporativismo, do imediatismo, da inconsistência política, da negociata
sem freio, da especulação desnorteante, do endividamento excessivo, da
corrupção desbragada, das fraudes a torto e a direito, das crises da
Justiça, das crises da saúde, das crises da agricultura, das crises da
educação, das crises da segurança das pessoas, das crises de tudo e mais
alguma coisa, da evasão fiscal, da derrapagem dos gastos públicos, do
descalabro, da descida espectacular de todos os indicadores para nos
colocarem já nem sequer na cauda, mas no olho do cu da Europa, olha,
parece um fado corrido mas é corrido da degradação (...) das
insatisfações grátis, do deixa andar, das promiscuidades
extraordinárias, dos escândalos de meia tigela e dos escândalos de alto
gabarito, do futebol como actividade política e empresarial, do desporto
como negócio, da política como negócio, da vida como negócio, dos erros
repugnantes de português, das colunas sociais pirosas, da falta de
qualificações, da falta de classe, da falta de nível, do subsídio, da
mendicância, do emprego público, da preguiça, do esmoricemento, do
atraso irrecuperável, da sem-vergonha. (...)
E toda a
gente sabe que é assim, que está tudo podre,mas não reage, toda a gente é
de uma passividade e de uma ignorância de bradar aos céus, ... toda a
gente se vai alheando dos grandes problemas numa desgarrada alucinada em
favor do que é mais imediato e acessório, em favor dos grandes chavões
que não servem rigorosamente para nada, em favor da grande... bacanal,
da grande orgia em que todos decretam a primeira coisa que lhes vem à
cabeça e ficam muito satisfeitos com a figura que fizeram, em favor da
televisão mais cretinizante do nosso tempo. Toda a gente tem o que
merece. Portugal entra no século XXI como o país das coisas mal feitas e
das imbelicidades anacrónicas.
MOURA, Vasco Graça, Meu amor, era de noite, Lisboa, 3.ª edição, Quetzal Editores, 2002, p.p. 46-48.
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