domingo, 30 de janeiro de 2022

O Peso das fronteiras

Aqui me tens. E o texto.

Partículas. Partes sensíveis, pequenas

vísceras onde se ocultam vermes;

uma poeira doce;

depois uma ferida.


Repara bem nas frases.

Na lenta fusão das letras sob o estômago.

Feriste-me. E as sílabas de um mar

há tanto, tanto tempo desejado,

vais ouvi-las mais tarde

quando discutes Marx, ofendes os amigos

ou passeias de mão dada com os poderes do tédio.


Insisto apenas para que me descubras.

Mais ou menos absorto. Virado de costas

ou simplesmente lendo

sem fome as páginas do tempo.

Nunca pensei muito.

Aliás, repara, quando os textos explodem

e se notam no ar as mil paciências

sobre a paciência;

quando a solidão se escama

como um peixe dúbio,

tudo se torna leve, final, tenso, coeso,

e tu podes ouvir, uivando,

um cão banhado em lágrimas.


Esse sou seu. Um cão dentro do túnel.

Já de patas desfeitas. Mais frio. Ao frio.

Roubando, entre os antigos, ossos

roendo, entre os modernos, mitos.


Os poetas começam onde acaba isto.

Este penso infectado que me pões nos olhos.

Um país termina. Logo nasce um outro.

E o território és tu,

população, governo.

Amor administrativo; viva pátria

dos cínicos.


Vamos: sacode as armas quietas

da mentira.

Alarga as fronteiras

com teu riso sinistro.


Eu, mar, ligadura dobrada

sobre o sol do amor,

ardo na terra. Vou e venho.

E, além do mais, sou isto.


CARVALHO, Armando Silva, O País das minhas vísceras, Língua morta, 2021, pp. 125-126.

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