sexta-feira, 24 de junho de 2022

Chegaste tão depressa...

 Vieste como um barco carregado de vento, abrindo

feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa

que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e  só ficaste

o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro


onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste, 

se partiste,

que dentro de mim se acanham as certezas e

tu vais sempre ardendo, embora como um lume

de cera, lento e brando, que já não derrama calor.


Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar

o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;

e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:

o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar,

exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam

no cais como se transportassem no corpo o vaivém

dos barcos. Dizem-me os seus passos


que vale a pena esperar, porque as ondas acabam

sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei

que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde

para quase tudo. Por isso, vou para casa                         P


e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.


PEDREIRA, Maria do Rosário, Poesia reunida, Lisboa, Quetzal, 2012, p.135

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