Ouve
O tempo bate como um coração puro
Deixa que o odor velho do barro se misture com a noite
Enquanto a água em silêncio envolve os séculos
Pelo limo do mármore
Desliza ao fundo o barco abrindo água
O tempo imperceptível
E deixa ainda que a palavra repouse no teu colo
Enquanto em cima a noite explode
E as madrugadas navegam nas artérias todos os lugares
Os canais fluidos do amor
Agora que a manhã absorve os primeiros sussurros do fogo
E sobre as águas a morte sobrevém
Os corpos constroem no suor a última Atlântida
De pedra e água
Passa por nós a vida e apenas restam marcas
Alguns vestígios no olhar
Passa por nós o tempo e restam os amigos
Sempre iguais
Esqueceste o teu rosto de perfil para a noite
Onde efémeros lugares habitam a memória
E eu revejo interminavelmente todos os nomes
O teu olhar roubou pequenos brilhos às estrelas
Olho em redor das mãos
Sorris
E à nossa volta é tudo só vestígios.
RIBEIRO, Rui Casal, Escrever a água, Lisboa, Edições Colibri, 2018, pps. 20-21.