Eu não tenho medo de morrer,
Por falta de água e de pão.
Não, não é disso que eu tenho medo.
Mas sim, de ficar só,
Sem ouvir uma voz,
Cercado de solidão.
RODRIGUES, João de Deus, Como era linda a primavera!, Lisboa, Edições Colibri, 2021, p. 29.
Eu não tenho medo de morrer,
Por falta de água e de pão.
Não, não é disso que eu tenho medo.
Mas sim, de ficar só,
Sem ouvir uma voz,
Cercado de solidão.
RODRIGUES, João de Deus, Como era linda a primavera!, Lisboa, Edições Colibri, 2021, p. 29.
Queria encontrar uma palavra, entre a saudade
E o absoluto, que me permitisse pensar sobre a vida,
Isto é, sobre alguma coisa. Pôr-me-ia no lugar do filósofo
e começaria por dizer que, se a vida
é alguma coisa, será no absoluto desse algo que
algo surgirá para iluminar o pensamento. Porém,
as distrações da vida começam a impor-se
entre mim e esse pensamento que procuro. Canso-me
de não saber mais do que aquilo que faz parte
Deste mundo que me rodeia: o mundo
Por onde passa um rio que não vejo e as únicas árvores
São essas que ainda crescem ao longo das avenidas,
Sob o fumo do passado que esconde a névoa
do futuro. Podia pegar num caderno de apontamentos
E percorrer as folhas em branco: aí, nesse vazio de palavras,
A palavra essencial é o nada que as preenche
Da primeira à última. Então, começo a escrever
Como se isso me ajudasse a encontrar um sentido; e,
Acabo com a saudade do caderno vazio
Perante o absoluto das palavras que o enchem.
Júdice, Nuno in A mais frágil das moradas - poemas à memória de Eduardo Lourenço, Lisboa, Guerra e Paz Editores, 2023, p. 101.
Amanhã dizes amanhã
Vai tudo ser diferente
VIEIRA, Alice, Os armários da noite, Alfragide, Editoral Caminho, 2014, p. 18.
Sinto falta de ti
Mas parece que tudo à minha volta nos afasta
Não são só as nossas vidas
Como os meus pensamentos
Eu, que tenho andado neste corropio de funerais
E de emoções tristes
Não tenho vontade para nada
Porém, pertences aos meus pensamentos!
Converso com a tua foto
Já que não te tenho por perto...
Queria ver-te para ter um carinho
Tão bom como é o teu
Mas como sei que queres sempre mais
Tenho de esperar que toda esta fase me passe
Para ansiosamente matar saudades
Por ver que o universo não me deixa te ver
Nem de fugida...
Xpto
Um lenço branco
Apaga o céu.
A fala da asa
vai traduzindo chuvas:
não há adeus
no idioma das aves.
O mundo voa
E apenas o poeta
faz companhia ao chão.
COUTO, Mia, Tradutor de chuvas, 3.a edição, Alfragide, Editoral Caminho, p. 24.
Afasta-te, mostrengo, afasta-te.
Não me tapes o caminho em frente, mesmo que não vá dar ao futuro. Contigo aos gritos mais o ódio escondido atrás de ti...
TORDO, Fernando, Não me tapes o caminho em frente, mesmo que não vá dar ao futuro, Lisboa, Editora Guerra e Paz, 2021, p. 17.
Há muitas palavras
Palavras como silêncios e
Silêncios como palavras
quando não são urgentes as palavras
nunca tardam e chegam sempre a tempo
a tempo de se mostrarem boas ou más
de ferirem ou aveludarem a pele dos sentidos
à vez
Com elas encerramos o dia e
disfarçamos todos os estorvos
com elas nos deitamos e sufocamos os
sonhos que desaproveitámos
com elas alindamos a terra e cavamos a sepultura
com elas fazemos a paz
fazemos a guerra
há muitas palavras
adiáveis todas
SOUTO, António, A Seiva dos dias e outros poemas, s.l., Europeus, 2021, p. 95.
Repete comigo:
Não deves
A ninguém
O teu
Perdão.
- excepto talvez a ti mesma.
LOVELACE, Amanda, Aqui a princesa salva-se sozinha, Alfragide, Oficina do Livro, 2019, p. 193.
Muitas vezes pensamos no que temos
Pela frente quando a noite se aproxima. Há
Uma súbita consciência de que o céu
Ficará vazio, e só um ruído de insectos
Perturbará o silêncio do mundo. No entanto,
Abro a rede que usei quando as palavras
Passavam à minha frente: e elas saem
De dentro dela e enchem a página, numa ordem
que segue o ritmo desse canto que ouvi
Quando andei pelo campo da estrofe. É
como se um novo sentido surgisse desse
ritmo e fizesse cantar o silêncio.
Júdice, Nuno in A mais frágil das moradas - poemas à memória de Eduardo Lourenço, Lisboa, Guerra e Paz Editores, 2023, p. 102.
Estou cheio de tédio, de nada. Em cima da cama
Leio, com uma minuciosidade atómica,
Lentamente, com uma atenção sem chama,
A Nova Enciclopédia Maçónica.
PESSOA, Fernando, Poemas esotéricos, Porto, Assírio e Alvim, 2020, p. 15.SOUTO, António, Sonhos sobrantes, A Seiva dos dias e outros poemas, s.l., Europeus, 2021, p. 80.
No dia em que eu cresci
Suspendi as férias e entrei pelas orlas do Outono enleado
Nos olhos dos pássaros que desistiram dos ninhos
(...)
SOUTO, António, A Seiva dos dias e outros poemas, s.l., Europeus, 2021, p. 69.
Só muito tarde percebi que
O nosso amor era apenas um
Inquilino temporário da nossa pele
Roubado sabe-se lá a quem
Até ao dia em que disseste tenho pressa
E aquela espessura transparente que
Só na cama as almas ganham
Desapareceu como se descesse
Sem ruído as escadas das nossas noites
E do que restava dos nossos corpos
- peças roídas de engrenagens vazias
Que te habitavam até saíres de mim
Como de um lugar incómodo.
VIEIRA, Alice, Olha-me como quem chove, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2018, p. 22.
Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo,
E apesar disso, crês? Nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
(...)
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de inverno.
(...)
Eu não sei se é amor. Será talvez comeco.
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.
PESSANHA, Camilo, Clepsidra, Lisboa, Guerra e Paz, 2021, p. 55.
Na penumbra da tarde,
O mundo morto,
A meu passo, despertava.
Não era o amor
que eu procurava.
Buscava o amar.
Na casa em ruínas,
Te despidas
Para que me deixasse cegar.
Voz transpirada,
suplicavas que te chamasse no escuro.
Em ti, poré,
eu amava
Quem não tem nome.
Na casa casa arruinada
te amei e te perdi
como a ave que voa
Apenas para voltar a ter corpo.
Na penumbra da tarde,
tu me ensinaste a nascer.
Na noturna claridade
me esqueci
que nunca havias nascido.
COUTO, Mia, Tradutor de chuvas, 3.a edição, Alfragide, Editoral Caminho, pp. 14-15.
O início do olhar, a dimensão das coisas
E a sombra à volta, o próprio corpo,
As casas, a largura do céu, ao longe um rio.
Encontramos depois aquilo que existe
dentro de nós mesmos, para principiarmos
a descansar. Adormecemos. A noite
vem ao nosso encontro e com ela chegam
outras imagens. São mais leves, trazem-nos
de um rio a água, do céu a transparência,
das casas o que era o seu acolhimento,
do corpo a inquietude. De tudo isto fica
também o esquecimento, uma outra imagem
que é a do nada. Julgamos ter sonhado,
mas foram os ramos da noite que tocaram
O nosso rosto. Feriram-no. Acordamos assim
GUIMARÃES, Fernando, Junto à pedra, Santa Maria da Feira, Edições Afrontamento, 2018, p. 73.
Grande é a vida, quando a morte passa.
Há um consolo puro de estar vivo,
Um repudiar tão doce por a ver passar,
Que encobre um pouco outra grandeza,
maior, é certo, mas tão dura, tão amarga,
de estar vivendo junto dela, dentro dela, em face dela,
passando nós na estrada em que só ela fica,
senhora da grandeza que não temos
senão... eis senão quando... era uma vez... contai...
SENA, Jorge de, Post-Scriptum, Porto, Assírio e Alvim, 2023, p. 33.
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| Évora |
Na sombra e no frio da noite os meus sonhos jazem.
Um frio maior cresce do abismo, e decresce.
Toca-me o coração de dentro a Mão que conhece.
As estrelas sobem. Por cima de mim se desfazem.
Ah, de que serve o sonho? O que acontece
Não é o que nós queremos, mas o que os Deuses fazem.
O silêncio oscila. Na inércia da hora paira
Um murmúrio ansioso da sombra.
A minha vontade é um acto alheio, um gesto visível
A olhos para quem o mundo visível é o que nós não vemos.
De que braço é todo o meu ser um só gesto abstracto?
Que movimentos no ar são as minhas acções queridas?
Falta ao meu senso de mim um ajuste e um tacto.
Jaz no chão com meus sonhos a cinza de todas as vidas.
PESSOA, Fernando, Poemas esotéricos, Porto, Assírio e Alvim, 2020, p. 54.
VIEIRA, Alice, Os armários da noite, Alfragide, Editoral Caminho, 2014, p. 19.
Correm turvas as águas deste rio
Que as do céu e as do monte as enturbaram,
Os campos florescidos se secaram
Intratável se fez o vale, e o frio.
Passou o verão, passou o ardente estio,
Umas cousas por outras se trocaram,
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento, ou desvario.
Tem o tempo sua ordem já sabida,
O mundo, não, mas anda tão confuso,
Que parece que dele se Deus se esquece.
Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.
Para ti Hugo, que o eterno descanso te dê a felicidade que mereces
Andrade, Eugénio, Sonetos de Luís de Camões escolhidos por Eugénio de Andrade, Lisboa, Assírio e Alvim, 2000, p. 16
Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
PESSANHA, Camilo, Clepsidra, Lisboa, Guerra e Paz, 2021, p. 27.
Não
Eu sei que não
És D. Sebastião
Apesar de desejar, essa ilusão
Por esperar a salvação
Nesta enorme solidão!
Todavia amar nunca será solução
Porque para ti sou apenas desejo de ocasião...
Xpto
Se eu sou nada esse nada deseja
Ser e só no amor encontra a consistência
Que envolve o nada que o acolhe e o liberta
Para ser oferenda a ti deus ignorado
O que eu sou é pouco para ti e é demais
e só o zero em mim é o teu círculo
e só no seu silêncio está o teu nome
Nada sabendo de ti sei que és o Simples
e se de ti não ouço o mais leve murmúrio
é porque tu habitas o silêncio de todos os silêncios
E é por esse silêncio que morro e ressuscito
ROSA, António Ramos, Poesia presente - Antologia, Porto, Assírio e Alvim, 2014, p. 303.
No passado, por não se repetir
No presente, por nada conseguir
No futuro, por duvidar no que há de vir...
Esperei por ti a
Vida inteira e não
Vieste
toda a demora é
mentira
SOUTO, António, A Seiva dos dias e outros poemas, s.l., Europeus, 2021, p. 98.
Ser sem limite e rei único na verdade,
Trago-te o que não tens na tua imensidade,
Faltas, erro, ignorância e males em pujança.
Mas inda ele juntar podia a esperança.
MOURA, Vasco Graça, O Poema sobre o desastre de Lisboa de Voltaire, Lisboa, Aleteia Editores, 2005, p. 53.
As tristezas que habitamos
Preservar a seiva dos dias
Por muitas penas que cresçam
hão de romper alegrias
SOUTO, António, A Seiva dos dias e outros poemas, s.l., Europeus, 2021, p. 11.